Opinião

As Causas. Perversidade e manhosice

Vivemos num Estado de Direito, ao contrário do tempo de Salazar. As expropriações são admissíveis, mas podem ser ilegais se não forem compensadas de acordo com um standard, que aliás nem é controverso no direito internacional

Agora, finalmente, e como se diz nos casinos, “les jeux sont faits”, ou seja, o “Pacote da Habitação” está pronto para decisão.

Infelizmente para a economia portuguesa e para quem no futuro precise de casas para arrendar, o Pacote ficou substancialmente na mesma no que tem de mais criticável.

Era o que eu previa, pois se trata de uma estratégia política e não da solução para problemas.

Vamos então dissecar alguns dos aspetos mais relevantes, que revelam habilidade, perversidade e manhosice de António Costa.

OBETIVAMENTE DESONESTO, POLITICAMENTE EFICAZ

A primeira conclusão é que se reforçou a confirmação de que estamos perante uma manobra política de António Costa, feita intencionalmente (outros dirão que com dolo).

É óbvio que nenhuns efeitos vão ter até 2026 as medidas sobre casas devolutas, arrendamento coercivo, redução do alojamento local, Parque Escolar (!) a fazer construção habitacional, IRHU (!) a gerir arrendamento habitacional disperso.

Ou seja, nada vai melhorar daí quanto ao acesso a habitação de quem não tem dinheiro para pagar.

Eu falara de “aldeias Potemkin”, “cortinas de fumo”, “pacote para enganar o pagode”, outros disseram coisas semelhantes, e o comentador Marcelo crismou o Pacote de “leis cartaz”.

No fundo, do que se trata é apenas de uma arma de arremesso político: de forma quase cândida de tão perversa, o Primeiro-Ministro disse – creio que na SIC – que ele dá prioridade aos que precisam de habitação e outros (leia-se os partidos e autarcas de Direita) ao alojamento local e aos especuladores das casas devolutas. Como disse de Carlos Moedas, “o presidente da Câmara acha que a prioridade das prioridades é a AL. Para o Governo são as famílias”.

Isto é objetivamente politicamente desonesto, mas é politicamente eficaz nos grandes meios urbanos onde se decidem eleições.

ANTÓNIO SALAZAR COSTA

Em segundo lugar, o Governo optou por uma estratégia de expropriações, ainda que o negue, e isso nada tem de comunismo, ainda que haja quem o afirme.

É que há duas coisas que vão mesmo acontecer e, por isso, não são apenas “cortinas de fumo” ou “leis cartaz”, mesmo que sejam manobras políticas como as outras.

Estou a falar da dupla tributação do alojamento local (como um novo imposto de 20%, aparentemente sobre o património e não sobre o rendimento) e do limite a 2% (ou 15%, se houver obras) do aumento dos arrendamentos habitacionais, mesmo que sejam novos e mesmo que as obras custem mais de 15% sobre o valor das rendas anteriores.

Nada disto é comunismo, como o Dr. Salazar poderia explicar: ele não inventou os congelamentos, mas desde 1948 em diante passou a ser proibido aumentar rendas em Lisboa e Porto.

Apesar da fraquíssima inflação nesses tempos, isso fez perder até 1969 cerca de 75% a 80% do valor das rendas, comparado com o que seriam com a mera atualização com base na inflação.

Do que se trata com estas medidas e outras (como a renda a pagar no arrendamento forçoso) é da expropriação de parte do rendimento de frações habitacionais ou do valor de atividades empresariais no caso do AL.

Vivemos num Estado de Direito, ao contrário do tempo de Salazar. As expropriações são admissíveis, mas podem ser ilegais se não forem compensadas de acordo com um standard, que aliás nem é controverso no direito internacional.

Esse standard, de “compensação justa”, é definido pelo “fair market value”, o que exige que o pagamento seja “prompt, adecuate and efective”: que se defina o valor de mercado do ativo expropriado e que ele seja pago “de imediato e de modo adequado e efetivo”.

O que está a ser feito pelo Governo, não é comunismo, mas é ilegal. Nenhum tribunal internacional teria dúvidas e foi por isso que após as nacionalizações de 1975 o Estado Português não aderiu logo a convenções internacionais de proteção de investimentos para não ter de pagar uma justa compensação.

Mas, ainda que fosse verdade, como refere António Costa, que se trate de “arrendar a valor de mercado uma casa vazia”, sempre seria uma expropriação pois é feita sem acordo prévio.

Até admito que a situação demonstre a existência de interesse público para se expropriar, mas como surge agora na proposta de lei a solução é manifestamente ilegal.

Mas além de ilegal, terá um efeito económico idêntico ao do congelamento de rendas do salazarismo: a fuga do investimento privado da habitação, a degradação do parque habitacional, a injusta proteção de inquilinos tantas vezes mais ricos que os senhorios.

E já se sente: como revelou Marques Mendes no passado domingo, a disponibilidade para arrendamento habitacional tombou fortemente a partir do anúncio das medidas em fevereiro.

A MANHOSICE DO PODER DADO ÀS AUTARQUIAS

Em terceiro lugar o Pacote Habitação é totalmente contraditório consigo mesmo, o que só é explicável por ser uma arma de arremesso contra as grandes autarquias que o PS não controla e para ser usado nas eleições autárquicas do Outono de 2025.

Por exemplo, como se compreende que se aplique o arrendamento forçoso a frações habitacionais e não a moradias? Ou que as medidas contra o alojamento local se apliquem se o imóvel estiver todo em frações de alojamento local e não se for numa moradia? Ou que as licenças se mantenham depois de 2030 para quem se financiou com empréstimos e não para quem arriscou poupanças suas ou de familiares?

Veja-se também o mapa onde a branco surgem os concelhos em que o alojamento local terá penalizações.

É óbvio que em grande parte dos “municípios brancos” não há excesso de alojamento local, os quais são aí instrumentos ainda mais importantes de atração turística, até por haver poucos hotéis.

O Governo não perguntou às autarquias no mapa a branco se no seu território havia problemas causados pelo alojamento local, e afirma até que elas têm total liberdade de apostar ou não no alojamento local.

Mas isso é manhosice: se quiserem emitir mais licenças isso será considerado como fator impeditivo de financiamentos PRR para a construção de habitação, pois significa que não há “carências habitacionais”.

Embora não seja tão claro, foi-me dito que também que nas autarquias que abdiquem de aplicar o regime de arrendamento forçoso a casas devolutas ocorrerá a mesma consequência.

Ou seja, todos sabemos que até às autárquicas de 2025, nada vai acontecer. Por isso as autarquias socialistas vão em teoria aplicar as medidas do Governo, receber financiamento a jorros e em 2026 dirão que já não é preciso acabar com alojamento local nem fazer arrendamento forçoso.

As autarquias que ousarem discordar são de imediato penalizadas em financiamento público e estigmatizadas por estarem contra as famílias sem casa.

É hábil? É perverso? Será. Mas, se calhar, há outras palavras ainda mais apropriadas para apelidar a política e o Político…

VIOLÊNCIA DE ESQUERDA E SEUS EFEITOS

Para quem esteja atento à História do Século XX europeu, há uma constatação óbvia: a violência e a anarquia, quando criada pela esquerda radical e extrema-esquerda, acaba sempre por ser o caldo de cultura da tomada do poder pelos radicais ou extremistas de Direita.

E continua a ser assim: por exemplo, a violência e radicalismo da esquerda francesa está a servir para que Marine Le Pen cada dia que passa tenha mais hipóteses de ser eleita presidente da República em 2027, desde logo pela moderação com que agiu na sua oposição ao aumento da idade da reforma.

Na última sondagem da Harris, Marine Le Pen (em 2º lugar), o líder do partido dela, Javier Bardella (em 3º) e a sobrinha Marion Maréchal (em 5º) lideram a lista dos políticos que gozam de maior confiança dos franceses, sendo que o 1º e o 4º são “gaullistas” e que Mélenchon está em 15º.

Na sondagem IFOP, também de março, o partido da União Nacional de Le Pen tem percentagem igual à aliança de todos os partidos de esquerda (NUPES) e mais que a aliança dos partidos apoiantes de Macron.

A União Nacional é agora, e de longe, o primeiro partido francês e cresceu 35% em relação à votação nas eleições legislativas de junho de 2022, sendo que os rivais nada subiram ou perderam apoios.

É neste contexto que deve ser vista a manifestação do fim de semana em Lisboa pelo direito à habitação e as violências (incluindo o tempo de antena que concederam aos radicais anti-polícia) com que acabaram.

Como era de esperar, o PCP condenou a violência, pois ao contrário de outros tem memória histórica.

E por isso parece óbvio e também se deve realçar a subida do CHEGA na sondagem ICS-ISCTE: aumentou 80% em relação ao resultado nas legislativas de janeiro de 2022, alcançando 13% (ou seja, mais do que PCP, BE, LIVRE e PAN somados).

E convém não esquecer a estratégia confrontacional do PS no tema da habitação, a sobrevalorização do direito à habitação sobre o direito de propriedade, a insistência no arrendamento forçoso e o facto de que apesar disso nos próximos dois anos nada ir acontecer.

Como disse em fevereiro, prevejo que tudo isso cause ocupações de casas (vejam Espanha), desobediência civil, violência, ou seja, o resultado de soltarem demónios que não se conseguem depois controlar.

Eu sei que a subida do CHEGA que disso vai resultar, pode dar algumas vitórias autárquicas do PS em meios urbanos. Mas a que preço?

O ELOGIO

Cotrim de Figueiredo e Guimarães Pinto (IL) apresentaram um projeto lei para que se deixe de pagar por renovações de certidões de registo comercial ou pela obtenção (automática) de certidões de que as empresas estão sempre a precisar. Ou seja, pretendem que as chamadas “certidões permanentes” deixem de ser temporárias.

Quem é advogado ou gere empresas sabe que este tipo de taxas (no caso, de 20 a 154 euros), no tempo da informática, têm tanta razão de ser pagas como a assinatura eletrónica do Diário da Republica, que quando fui Bastonário ajudei a começar a acabar, mas que só em 2018 passou a ser gratuito de forma universal.

LER É O MELHOR REMÉDIO

Como regra prefiro, por razões óbvias, sugerir livros editados em Portugal. Mas hoje não será assim com parte deles, pois vou sugerir três livros de portugueses que nos devem encher de orgulho e levar a fazer um esforço para ler ao menos algum deles.

Estou a falar de: (i) “The Oxford Handbook of Portuguese Politics”, coordenado por Jorge M. Fernandes, Pedro Magalhães e António Costa Pinto, de “Strategic Autonomy and Economic Power” (Routledge), de Vítor Bento, e da tradução da obra do malogrado professor de Yale, Nuno P. Monteiro, “Teoria da Política Unipolar” (Edições 70).

Sei bem, sem me comparar com eles, que não é fácil para portugueses marcar presença em mercados abertos e competitivos e ainda menos atingir o nível de excelência. Os exemplos de hoje revelam assim o “esplendor de Portugal”.

A PERGUNTA SEM RESPOSTA

A CEO da TAP (que não conheço e de quem não quero ser advogado, apesar de uma malévola imputação ou graçola do “SOL”) revelou mensagens trocadas com a equipa ministerial de Pedro Nuno Santos.

Entre outras pérolas, prova que foi proibida de falar com outros ministérios, que a negociação com Alexandra Reis foi dirigida a partir desse ministério, que PNS não achava excessivo pagar 500 000 euros.

A pergunta é óbvia: para quando o pedido de desculpas ao País pelas mentiras e falsos esquecimentos do putativo sucessor de António Costa? Será na Comissão de Inquérito à TAP? E o pedido de desculpas de António Costa pela forma como escolhe Ministros?

A LOUCURA MANSA

Comecei por pensar que era fake news. Mas não. O Ministro do Interior francês estigmatizou a violência e destruição provocada por manifestantes de “extrême-gauche, ultra-gauche”, o que foi traduzido na RTP por “extrema-direita, ultra-direita”.

Se tivesse sido intencional era um ato político-ideológico, apenas estúpido. Mas estou certo que não foi, que se tratou de um equívoco, o que o torna muito mais importante em termos político-sociológicos.

O condicionamento político-cultural atuou inconscientemente, e isso é que tem significado, pois a reação “pavloviana” é que a violência só pode ser de Direita e não de Esquerda.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas