A “pós-verdade” enquanto omissão da factualidade
Alegar que o Governo está a empobrecer os portugueses é um "facto alternativo", porque, factualmente, o que está a retirar poder de compra aos portugueses, como aos demais europeus, é a inflação
Há uns anos, se havia palavra com rodagem no espaço público era a palavra "pós-verdade". Na televisão, na imprensa, nas redes sociais, debatia-se com afã esse conceito na tentativa de explicar o Brexit ou o sucesso dos Trump desta vida. A "pós-verdade", recorde-se, define um regime de discussão pública em que a apreensão subjetiva dos factos tem primazia sobre a objetividade dos mesmos. Logo, importa menos fazer prova da verdade ou da falsidade de uma dada afirmação do que levar o seu destinatário a aderir emocionalmente a ela. Basta que a afirmação entre em ressonância com as crenças ou as descrenças de um dado grupo de pessoas. No caldo das redes sociais, os artesãos da "pós-verdade" conseguem fazer caducar a normatividade do verdadeiro e do falso. A verdade torna-se uma coisa que vem a despropósito, quase uma impertinência.
Mas nem o mais industrioso fabricante de "pós-verdade" pode torcer a factualidade com origem no INE ou no Eurostat até a converter em opinião. Não é uma opinião que o ano de 2022 tenha registado um crescimento económico de 6,8%, o melhor desde 1987. Não é uma opinião que a taxa de desemprego ande em mínimos históricos no que vai deste século. Não é uma opinião que as exportações tenham tido o maior peso no PIB da nossa história. Não são opiniões os números oficiais sobre o investimento direto estrangeiro ou sobre a percentagem de energias renováveis na geração de eletricidade, ou sobre o recorde dos pedidos de patentes, etc. Pelo menos, não tenho lembrança de alguma força política se ter socorrido de outras fontes estatísticas para contradizer as oficiais e apresentar “factos alternativos”. Valha-nos ao menos isso.
Claro que há números e estatísticas que podem ser usados em desfavor do Governo. A sua ação não é isenta de falhas: atrasou-se na resposta ao problema da habitação e desvalorizou, numa primeira fase, as complexidades da execução do PRR, para dar dois exemplos; tal como o PS não está isento de ceder, por vezes, a uma retórica edulcorada e às tentações da sofística, especialmente quando insiste em recalcar os anos do Programa de Assistência Económica e Financeira.
Embora a repercussão imediata na vida dos portugueses de alguns dos indicadores acima referidos seja difícil de ponderar, eles transportam em si mesmos uma factualidade que não pode ser simplesmente atropelada e removida do caminho. Como tal, as oposições enveredam pela sua omissão programada. Veja-se o caso do PSD. Noutros tempos, este partido saberia pelo menos simular que se animava com resultados que importam ao futuro do país. Hoje, omite metodicamente da sua intervenção pública todo e qualquer indicador positivo.
Quando o PSD guarda silêncio sobre os números do défice ou da redução da dívida pública, quando enjeita aquela que foi, por tantos anos, a menina dos seus olhos e o seu único ideário, só podemos presumir que essa renúncia é vivida internamente como quem vive o drama de uma apostasia.
Mas o atual PSD não se fica pelas omissões planeadas e apostasias orçamentais. Que André Ventura compare o palmarés da Roménia com o de Portugal – que compare um país onde o Estado social quase não existe com o nosso – pode perceber-se; afinal, o bom populista é aquele que compara o incomparável. Mas que o faça um partido que ajudou a desenvolver o Portugal contemporâneo e inclusive, nalguns períodos, a expandir o Estado Social, é deprimente e insólito, porque cauciona uma imagem depreciativa do país e da sua história recente que não só não colhe como é corrosiva para a sua autoestima.
Que outros partidos acusem o Governo de “empobrecer” o país – omitindo a crise inflacionária e as ondas sísmicas da guerra da Ucrânia – ainda se encaixa: não têm vocação governativa ou real expectativa de alguma vez liderarem um governo; que o faça o PSD, que governou com o espartilho da troika, é deplorável.
Evidentemente, alegar que o Governo está a empobrecer os portugueses é um "facto alternativo", porque, factualmente, o que está a retirar poder de compra aos portugueses, como aos demais europeus, é a inflação, que o Governo tem enfrentado com prudência, essa virtude cardeal dos Antigos que, já para Epicuro, significava fazer escolhas por “comparação e exame das vantagens e desvantagens”.
Os políticos não têm de fazer prova de factualidade estatística de cada vez que ajuízam ou deliberam. O recurso obsessivo à estatística equivale mesmo a uma derrota do pensamento. A palavra política é também o domínio do provável, do plausível, do credível, do verosímil. O perímetro do debate político tem demarcações específicas, desejavelmente, uma ética da discussão e uma arte de deliberar cujos fundamentos herdados de Aristóteles continuam de pedra e cal. Mas omitir reiteradamente a factualidade estatística releva de um laxismo que pode danificar o valor da verdade. Haverá poucas coisas mais danosas para a democracia.
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