Há uma cena clássica do filme Casablanca, em que o Capitão Renault, chefe da polícia da França de Vichy na cidade marroquina, tem que arranjar um pretexto para fechar o bar de Rick, de que é habitué, sob ordens alemãs. Quando Rick lhe pergunta com que fundamento, Renault responde, aparentando indignação: “estou chocado – chocado! – por descobrir que se joga aqui”, para, logo de seguida, receber do croupier os seus dividendos do jogo dessa noite.
É difícil assistir à atuação de Boris Johnson no chamado partygate ao longo destes meses e não nos lembrarmos desta frase. A idoneidade do seu governo deixou muito a desejar em imensos aspetos, mas o nível de teatralidade que atingiu este escândalo é digno de referência.
Vale a pena recapitular esta história insólita. Boris Jonhson foi acusado de ter infringido a legislação que ele próprio decretou durante a pandemia, que proibia ajuntamentos sociais durante o período de confinamento, ao ter permitido a realização de mais de 15 festas – e participado em pelo menos cinco destas – em 2020 e 2021, na sede do governo britânico em Downing Street. Primeiro, Johnson negou taxativamente que tais festas tivessem existido: tratava-se somente de eventos de trabalho. Foi esta a sua explicação para uma festa de maio de 2020, cujo convite enviado por email a 100 membros da sua equipa pelo seu secretário afirmava ser para “gozar o bom tempo” e pedia para o convidado levar “a sua própria bebida”.
À festa surpresa do seu aniversário, em junho de 2020 – a única participação que lhe valeu uma multa –, Johnson respondeu que não tinha sido uma festa, porque não tinha sequer havido bolo nem se tinha cantado os parabéns. Posteriormente, obrigado a admitir a existência destas festas, afirmou categoricamente que estas tinham cumprido todas as regras da pandemia.
Quando o relatório de Sue Gray e a investigação policial, que distribuiu 126 multas por 83 membros da sua entourage mais próxima e da sua equipa, provaram que as festas tinham efetivamente violado a legislação relativa ao confinamento em vigor na altura, Johnson justificou com a “absoluta necessidade” para efeitos de trabalho de as organizar: as festas de despedida de membros da equipa tinham sido necessárias para agradecer os seus contributos e para “levantar o moral” em tempos difíceis.
Quando, na sessão de inquérito da comissão parlamentar dos Privilégios da Câmara dos Comuns, a questão essencial passou a ser se, nas suas declarações ao Parlamento, a indução dos deputados em erro tinha sido ou não deliberada, Johnson preparou uma nova estratégia de defesa que se pode traduzir como ‘ah, desculpem, não me apercebi’. Atirou as culpas para os seus assessores, que lhe teriam garantido que todas as festas estariam em cumprimento das leis sanitárias (e que, entretanto, já o vieram desmentir), e deixou o aviso de que a comissão não tinha nenhum documento em contrário – isto é, não há nenhum email escrito por Johnson onde afirme definitivamente: ‘eu sei que é uma festa e sem distanciamento social, mas estou a caminho e levo uma garrafa de vinho’.
Passámos, portanto, de não aconteceu, para aconteceu mas era legal, para pensava que o que tinha acontecido era legal – pontuado com um ar irreprimível de privilégio e irritação, de quem não percebe sequer por que tem de prestar contas.
A violação das regras ter sido cometida pelo responsável do governo britânico que as escreveu e anunciou publicamente é grave; que invoque não as ter entendido – ao ponto de acreditar “de boa fé” que estavam a ser cumpridas – é, no mínimo, caricato; mas que porventura nada disto sirva como ónus da prova para que a sanção mais grave lhe seja aplicada será um precedente problemático.
Acima de tudo porque, na realidade, este episódio é maior do que Boris Johnson. O partygate reflete a quebra de confiança nas instituições públicas e na integridade dos políticos. Mas a confiança na integridade de Johnson e de um governo que este criaria nunca existiu verdadeiramente. Não há praticamente ninguém do Partido Conservador, do Parlamento ou do público inglês em geral que não esperasse que, ao longo do seu mandato, a seguir a um escândalo só poderia vir outro. E como essas expectativas foram cumpridas nestes três anos.
Desde a prorrogação ilegal do Parlamento no meio da crise política sobre o Brexit, às 200.000 libras de um doador dos conservadores para restaurar a sua residência em Downing Street, à tentativa de forçar os conservadores a revogar a suspensão de Owen Patterson por violação das regras de lobbying, à nomeação de Chris Pincher para o Governo, apesar de ter conhecimento da sua história de alegado assédio sexual, as celeumas sucederam-se em catadupa. Que um dos momentos mais caricaturados da audiência tenha sido precisamente quando Johnson jurou dizer a verdade com a sua mão na Bíblia é ilustrativo da reputação do ex-primeiro ministro.
E, no entanto, a Boris Johnson foi-lhe permitido muito, sem qualquer repercussão, nomeadamente ter sido politicamente responsável por uma das taxas mais elevadas de mortalidade causada pela covid-19, com mais de 175.000 mortos. Para uns, o único capaz de concretizar o Brexit, para outros o único capaz de ganhar eleições para os Tories, foi apenas quando os problemas do Brexit evidenciaram a profunda incompetência da sua governação, e quando ficou evidente que Johnson, em vez de trunfo eleitoral, simbolizava agora uma derrota garantida é que o deixaram finalmente cair.
Qualquer semelhança com Trumps e Bolsonaros não é pura coincidência. O partygate e outras situações análogas um pouco por todo o mundo dizem mais sobre nós, eleitores, do que sobre os seus protagonistas, de quem já é expectável este tipo de comportamento. Eles anunciam ao que vêm e são eleitos por isso ou apesar disso. Por outras palavras, ninguém apoia e protege politicamente ou elege um Boris Johnson à espera de um fim à la Casablanca, em que o Capitão Renault se alia ao romantismo do filme, se redime e, de colaboracionista, se converte em resistente.
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