Opinião

As Causas. Jardim à beira mar plantado

Sempre na história dos povos por vezes se abriram cloacas por onde irromperam os que queriam destruir a Civilização. Mas nunca como hoje o risco de que o façam foi tão grande

A recusa violenta do respeito da lei em França (passagem de idade da reforma de 62 para 64 anos em 2030!) prenuncia uma tendência que infelizmente vai crescer na Europa.

Apesar disso, em Portugal felizmente temos arrufos de namorados e consensos que permitiram o lançamento do IVA 0% para o cabaz básico.

Razão havia para que “jardim à beira mar plantado”, o verso de Tomás Ribeiro, tenha sido usado para nos definir na nossa História Contemporânea. Não por falta de problemas, mas pelo modo como os enfrentamos.

OS IDOS DE MARÇO

O que se está a passar em França tem tudo a ver com o assalto ao Capitólio há 3 anos, pelos mais extremistas dos apoiantes de Trump, e com o assalto ao Congresso, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal em Brasília, pelos mais extremistas dos apoiantes de Bolsonaro.

Um simbólico exemplo é dado pela foto da porta da Câmara de Bordéus (liderada aliás por um ecologista de esquerda) a arder.

Também é simbólico que Mélenchon (o líder da esquerda radical, que comanda uma coligação que é a 2ª força política francesa) tenha dito que “arderem quatro ou cinco caixotes de lixo não é nada comparado com o que já vimos no passado", esquecendo o que se passou por toda a França nos últimos dias e quase que pedindo mais...

Nos “media” não se comparam as três realidades e sobre França não vi líderes mundiais a falar de “assalto à Democracia”. Mas é o que se está também a passar, infelizmente.

Eu sei que – em França como nos EUA e no Brasil – a violência política extremista se baseia numa autojustificação por parte dos díscolos, que consideram justificados os seus comportamentos.

Sei também que eles são reprovados pela esmagadora maioria dos cidadãos, incluindo consoante o caso muito dos apoiantes de Trump, Bolsonaro ou Mélenchon, apesar desses líderes os não desautorizarem, antes culpando Biden, Lula ou Macron.

E sei que os radicais de direita se sentirão insultados por os misturar com a extrema-esquerda francesa e os radicais de esquerda por os misturar com a extrema-direita norte-americana e brasileira.

Mas, como se costumava dizer, “se grasnam como um pato, andam como um pato, parecem um pato, é que são patos”. E, de facto, são irmãos inimigos: respondem a causas idênticas, produzem consequências idênticas, têm idêntico desprezo pela Democracia Liberal e - sem estados de alma - admitem o seu fim.

Sei também que sempre na história dos povos por vezes se abriram cloacas por onde irromperam os que queriam destruir a Civilização.

Mas nunca como hoje o risco de que o façam foi tão grande. Por isso me lembrei dos “Idos de Março”, em que o assassinato de Júlio César, pelos defensores da República romana, acabou afinal a abrir o caminho ao Império que abominavam.

A TEMPESTADE PERFEITA

O que torna a situação mais preocupante é a conjugação – em tempestade perfeita – de fatores que dificilmente podem ser controlados.

Alguns factos exemplares:

  1. As redes sociais dão oportunidades que os radicais nunca tiveram para ocuparem o espaço público sem que tenham de se agregar com mais moderados;
  2. Décadas de ataque à Democracia (ou à “democracia burguesa”) criaram um caldo de cultura para justificar o desrespeito das decisões legais e legítimas que sejam tomadas em regimes democráticos como se o tivessem sido em regimes autocráticos;
  3. Os moderados refugiam-se na sua própria privacidade e na recusa de se afirmarem contra os radicalismos, pelo que o regime democrático não tem defensores;
  4. As estruturas de integração dos mais desfavorecidos (em França, a Igreja Católica, o sindicalismo comunista e o serviço militar) desagregaram-se e nada nem ninguém tomou o seu lugar.

E mais alguns factos:

  1. Regimes autocráticos violentos cercam os oásis de Liberdade que restam e são um fator de atração para as classes médias que ilusoriamente pensam que a luta contra a violência antidemocrática das massas ignaras só pode ser feita pela aceitação de autocratas que impõem a paz dos cemitérios;
  2. Nunca foi tão rasteira a qualidade da classe política da Democracia, muito causada pela deserção do espaço público das elites, que se refugiam atrás das muralhas que criaram para fingirem que nada disso tem a ver com eles;
  3. Nunca foi tão grande o egoísmo social, a “ghettização” dos poderosos indiferentes aos que sofrem dificuldades, e a visível acumulação pornográfica de riqueza nos países mais desenvolvidos;
  4. A sucessão de crises (Dívida soberana, Covid, Guerra na Ucrânia, inflação, etc) geram uma sensação de angústia social e potenciam doenças mentais e comportamentos sociais desviantes.

Por isso olho para a frente e temo que o combate político tenda a ser feito na Europa, como já é em muita América Latina (e não estamos livres que seja assim em 2024 nos EUA), entre grupos radicais, como seria uma 2ª volta das presidenciais francesas em 2027 entre Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon.

Será assim, talvez. A não ser que os moderados deixem de pensar que têm de procurar consensos com os radicais, que a negociação depois de aprovação de leis tem de continuar a ser feita com eles. Veremos se Macron é capaz de ser líder e se a sociedade francesa é capaz de perceber os riscos que está a correr.

OS ARRUFOS DOS ALEGRES NAMORADOS

Na frente doméstica – como se vê por esta fotografia na República Dominicana – tudo é mais calmo. Vivemos o drama de arrufos de namorados, que desaparecem como nevoeiro matinal com a chegada do sol quente.

Há dias a mensagem que passava era que o idílio entre Costa e Marcelo tinha acabado e a brutalidade da reação do Primeiro-Ministro na Assembleia da República não parecia deixar dúvidas.

Mas isso é esquecer que o líder socialista se tornou no maior especialista vivo em “marcelologia” e sabe como dar a volta a Marcelo, é não ter presente que Marcelo foge aos confrontos por saber que isso reduz a sua popularidade, e também que por baixo da espuma dos dias ambos querem conviver até 2026 (como curiosamente Marcelo veio dizer explicitamente depois do arrufo).

Quem olha para esses jogos florais e conclui que daí vai decorrer uma crise política ou que a estratégia de Marcelo mudou, é melhor esperar sentado.

Do que se trata é de uma hábil gestão dos dois lados, que obriga de vez em quando a criar a ilusão de enfrentamento, que não é mais do que o desejo de libertar alguma pressão, criar alguma ilusão, enganar mais alguns incautos de um ou do outro lado do espectro político.

Mas não deixa de ser curiosa a conferência de imprensa conjunta que fizeram, com o pretexto da Cimeira, mas para falar da tensão doméstica.

Deus me perdoe se estiver errado, mas pareceu-me que o Presidente da República não estava feliz a fazê-la, que estava tenso e nem o disfarçava e que o Primeiro-Ministro, além de ocupar o palco, parecia que estava eufórico.

Mas não foi possível obter, designadamente da Lusa, nenhuma imagem com António Costa a falar e Marcelo a ouvir. Seja lá o que tudo isso signifique…

O VIRTUOSO IVA A 0%

Outro tema relevante foi a reação do Governo à crise inflacionária, usando parte da folga que a inflação gerou nas receitas do Estado em 2022 (e que se mantém em 2023).

As medidas merecem realce, em especial porque:

  1. Não avançaram no sentido da disparatada tentativa do controlo de preços, limitação de lucros, e outras ações duras, e acabaram com os ataques à base de publicidade enganosa contra a distribuição, antes optando pelo diálogo com o mundo empresarial, e em especial com a produção e venda no retalho de produtos alimentares;
  2. Vão reduzir impostos (no caso o IVA sobre um cabaz de produtos, que passará a ser de 0%), ou seja – em linguagem económica – o Estado aceitou reduzir a sua margem de lucro sobre a atividade económica;
  3. Baixaram a tensão social com que nada teriam a ganhar.

Esta estratégia foi criticada por ser tardia e por perpetuar e ampliar uma cultura de subsídio e dependência da vontade estatal.

Foi tardia, realmente. Mas o objetivo foi conseguido: reafirmar que sem folga orçamental não há nada para ninguém.

Visa criar “subsidiodependência” e retirar efeitos políticos (e por isso não se agiu sobre o IRS, reduzindo taxas à classe média): é verdade, mas é preciso não esquecer que o Governo é de Esquerda e estas são as suas receitas ideológicas clássicas, pelo que os setores que apostam na liberdade dos consumidores e cidadãos precisam de ganhar eleições para mudar este paradigma.

Claro que a inflação não vai acabar devido a esta medida. Mas o Estado e a indústria fizeram o que lhes competia. O que olhando para França não me parece pouca coisa…

O ELOGIO

Jorge Moreira da Silva foi nomeado subsecretário-geral adjunto de António Guterres na ONU e diretor executivo do Escritório das Nações Unidas para Serviços de Projetos (UNOPS), a agência das Nações Unidas responsável pela coordenação de ações de ajuda humanitária, desenvolvimento e construção da paz. Segundo li, será uma espécie de nº 3 da ONU.

Merece elogio por esta escolha, que aliás corresponde muito mais ao seu perfil do que liderar o PSD.

LER É O MELHOR REMÉDIO

Ler é um ato de cultura, mas pode ser uma trincheira na luta pela civilização, que como resulta do que disse atrás começa a ser uma luta entre a vida e a morte.

Por isso hoje sugiro:

  1. Será o Cozinheiro Boa Pessoa?” (Relógio de Água), de Javier Marías (talvez o maior romancista espanhol nas últimas décadas), que reúne crónicas que foi publicando no El País; e
  2. Correspondência” entre Eduardo Lourenço e Jorge de Sena (Gradiva), dois dos intelectuais que encheram a 2ª metade do Século XX português e que durante 28 anos se “cartearam” e também desse modo iluminaram o nosso tempo.

A PERGUNTA SEM RESPOSTA

A “loucura mansa” em 28 de fevereiro foi a demora de quase dois anos em regulamentar a lei que obriga ao sorteio do coletivo de juízes.

Ontem foi subitamente publicada a Portaria. Ainda bem, mas a pergunta é óbvia: Qual a razão para que o Governo não faça logo o que é obrigado por lei a fazer? Será que é preciso fazer um desenho para que percebam que este recorrente hábito de atrasar, nascido do desleixo e da incompetência, contribui para minar a confiança dos cidadãos?

A LOUCURA MANSA

O Correio da Manhã revela hoje que o célebre navio Mondego teve de “abortar a missão” que o levava às Ilhas Selvagens, devido alegadamente a uma “falha geral de energia a bordo”.

Nada disto justifica a indisciplina que ocorrera, mas devia ter justificado mais serenidade na reação e urgentes reparações antes de retomar o serviço.

E, sobretudo, é uma loucura que o Governo há anos que nos bombardeie com as maravilhas que o mar português nos vai trazer e ao mesmo tempo deixe chegar a este nível o estado da frota.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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