Opinião

Processo marquês – a última perfídia

Processo marquês – a última perfídia

José Sócrates

Ex-primeiro-ministro

O Estado e os seus agentes são diretamente e exclusivamente responsáveis por mais de nove dos dez anos de demora do processo marquês. Nove em dez - nada mal para quem se queixa de manobras dilatórias da defesa

A última perfídia do processo marquês consiste, basicamente, na ideia de que existe um conluio secreto entre mim e o governo para que este último não regulamente a lei que impõe o sorteio de todos os juízes. Em síntese, o argumento corre assim - o governo não regulamenta a lei e a razão por que não o faz é o Sócrates. Como se sabe, desde as guerras púnicas que nada de mal acontece neste país que não seja culpa minha. O que esta manhosa análise tem de antologia é pretender ignorar tudo o que escrevi a propósito do comportamento do governo nesta questão, a saber: a) que o Governo está desde setembro de 2021 na situação de ilegalidade por omissão; b) que esta omissão legislativa não é uma questão menor, mas relativa a uma das garantias constitucionais mais importantes, a do juiz natural; c) que a ausência de regulamentação não surge por desleixo, mas que se trata de uma opção política absolutamente ilegal; d) que o Governo sempre encarou com reserva mental o cumprimento da Lei que a Assembleia aprovou. É preciso, portanto, ser muito desonesto para afirmar que a atitude do governo, que tanto tenho criticado, visa, afinal, beneficiar-me. Muito desonesto.

Todavia, a parte mais maliciosa desta estória consiste em ligar a regulamentação da lei à sua entrada em vigor. O argumento é o de que a lei não está em vigor porque a regulamentação não foi feita. Não, não é assim. A norma da lei que institui o sorteio de todos os juízes - os juízes relatores e os juízes adjuntos - está em vigor porque não necessita de nenhum tipo de regulamentação. Porque, como tenho escrito abundantemente, se trata de uma norma exequível por si própria. E não é porque os juízes dos tribunais superiores dizem que a norma não está em vigor que eu vou deixar de dizer que está. Se o rei está nu, alguém tem de o dizer, ainda que não tenha nenhuma espécie de expetativa na posição dos advogados, dos professores de direito e, de forma geral, na atitude de quem tem responsabilidades públicas com o direito e com a lei. Há muito que sei com o que conto. E, no entanto, isso só me dá ainda mais responsabilidade para continuar a dizê-lo de forma calma e tranquila – os tribunais superiores estão obrigados a sortear todos os juízes desde que a lei foi aprovada pela Assembleia da República. E, já agora, com licença de opinião diversa, um juiz de um tribunal superior que tenha sido escolhido para um processo sem que tenha sido sorteado como a lei impõe, não é o juiz legal da causa e, assim sendo, isso constitui motivo grave e sério para pôr em causa a sua imparcialidade. Pronto, é isto. Admito outro entendimento, mas o que considero absolutamente inadmissível é que se trate este ponto de vista como se estivesse envenenado por falsas intenções que nunca tive.

Depois, a segunda parte da perfídia parece já plano de desespero. É absolutamente falso que a responsabilidade da demora do processo marquês seja da defesa, dos recursos da defesa ou das chamadas “manobras dilatórias” da defesa. No entanto, embora seja completamente falsa a alegação, todos parecem insistir nela. Assim sendo, não vejo outra forma de repor a verdade que não seja repetir os factos. Primeiro facto – o inquérito demorou quatro anos e essa demora é da inteira responsabilidade do Ministério Público. Segundo facto – a instrução demorou três anos e meio e essa demora é da inteira responsabilidade do tribunal. Terceiro facto – a disputa entre os dois juízes para apurar qual deles tinha competência sobre o processo depois da decisão instrutória demorou oito meses e essa demora é da inteira responsabilidade dos dois juízes. Finalmente, quarto facto – a pedido do Ministério Público o juiz deu quatro meses à acusação para apresentar recurso (o que implica, claro está, igual prazo de quatro meses para a defesa) e essa demora é da inteira responsabilidade de quem pediu, o Ministério Público, e de quem concedeu, o juiz de instrução. A operação aritmética é simples de fazer – o Estado e os seus agentes são diretamente e exclusivamente responsáveis por mais de nove dos dez anos de demora do processo marquês. Nove em dez - nada mal para quem se queixa de manobras dilatórias da defesa.

Finalmente, em resposta aos ataques pessoais, resta dizer que há quem com a idade fique mais sábio e há quem fique apenas mais velhaco do que já era. Os habituais comentadores do processo marques não pedem justiça, mas condenação. Eles não pedem um julgamento imparcial, mas uma condenação sem julgamento. Condenem-no e condenem-no rapidamente, por favor. A inocência, que o visado reclama desde o primeiro momento, é que não pode ser. A inocência está fora de questão. Neste caso o julgamento não pode ser imparcial. No fundo, no fundo, o que os comentadores do processo marquês estão a dizer é que o sistema judicial deve continuar ao serviço do seu interesse político, como esteve no tempo da vigarice processual que entregou o processo ao juiz Alexandre. Nesse tempo é que era bom, nesse tempo prendiam, difamavam e insultavam sem necessidade de ouvir a defesa nem necessidade de qualquer julgamento. É preciso ter perdido qualquer sentido de decência para atacar desta forma um adversário político. Mas é assim, sem escrúpulos, que a direita pretende conduzir a sua linha política. O julgamento popular é o melhor que arranjam.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas