Opinião

Incendiários unidos

Incendiários unidos

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

O drama da política francesa é duplamente preocupante. Mélenchon e Le Pen são aliados táticos e incompatíveis com uma União Europeia democrática e das liberdades. E o que se está a passar ali é repetível noutros lugares da Europa

O vandalismo nas ruas de França e a indisponibilidade dos franceses para, em 2030, se reformarem só a partir dos 64 anos é o menor dos problemas de Emanuel Macron e de França. O grande problema, sem resolução evidente à vista, é o vazio político ao centro. Não há com quem negociar. E isso é o fim da política.

Para a maioria dos europeus, e para quem acredita que as instituições democráticas servem para resolver os conflitos políticos sem recurso à violência, as cenas de vandalismo e confronto nas ruas de Paris e de outras cidades francesas, por causa da alteração da idade da reforma por decreto presidencial, parecem o caos que antecede as revoluções e a dissolução dos regimes. Para os franceses, é mais um domingo de protestos.

Quem acompanha a política francesa e se lembra, por exemplo, dos tumultos dos banlieues em 2005, quando Sarkozy era ministro do interior e provável candidato presidencial, ou das manifestações dos Gilets Jaunes, em 2018, já viu Paris e outras cidades francesas com carros e caixotes de lixo a arder umas quantas vezes. E já se habituou à normalidade com que estas manifestações são recebidas. É uma peculiaridade do sistema político francês: independentemente do resultado do processo político através das instituições democráticas, há uma parte da população disponível para levar o confronto político para a rua de forma tumultuosa.

A rejeição, com esta violência, da alteração da idade mínima da reforma, a partir de 2030, dos 62 para os 64 anos também há-de parecer uma excentricidade francesa. Em toda a Europa, a idade média de reforma é superior a esse futuro limite mínimo. E em lado nenhuma essa circunstância produziu semelhantes reacções. De novo, uma especificidade francesa. Os franceses revoltam-se com bastante facilidade quando estão em causa o que consideram direitos definitivamente adquiridos.

Por último, também não é extraordinário que um governo francês faça passar por decreto presidencial o que não consegue (ou tem medo de não conseguir) aprovar na Assembleia. O que não impede de se considerar o expediente de duvidosa qualidade democrática. Mas essa é outra questão. E não sendo nova, não explica, por si só, o que se está a passar. Mesmo que uma enorme maioria, cerca de 70%, considere esse procedimento inaceitável e merecedor de protesto.

Tudo isto – a forma como foi aprovada a reforma, a recusa da reforma pelos franceses e os tumultos nas ruas – faz parte de como se faz política em França. E sendo, no mínimo, impressionante, não é motivo de maior preocupação para a União Europeia ou para os restantes Estados membros. O verdadeiro problema é outro.

Nas duas últimas eleições francesas, presidenciais e legislativas, ficou claro que Macron era, óbvia e naturalmente, o inimigo comum de Le Pen, à extrema direita, e de Mélenchon à extrema esquerda. Mas, mais do que isso, ficou evidente que os extremos sabiam que se beneficiavam mutuamente. A melhor hipótese que Le Pen tem de um dia ser presidente é se o seu opositor for Mélenchon. E a melhor hipótese de Mélenchon ser Presidente da República é precisamente a inversa: se a alternativa for Marine Le Pen. (E quem diz um e o outro, diz quem os suceda politicamente). Foi por isso que Mélenchon não foi capaz de apelar ao voto em Macron, contra Le Pen. Porque se Le Pen fosse eleita, Macron e o macronismo morreriam e Melénchon tinha esperança de poder ganhar as legislativas e ser maioritário na Assembleia. Esta relação sinalagmática entre extremistas é óbvia. Por isso gritam tanto uns com os outros e uns contra os outros. O que é menos óbvio mas igualmente, ou mesmo mais, preocupante, é a explicação para estas serem as alternativas: porque o resto do centro morreu.

O Partido Socialista Francês desapareceu, para efeitos práticos, nas últimas eleições legislativas. Os Republicanos, a direita democrática, está em risco de ir pelo mesmo caminho. E não sabe como evitar esse destino: se competindo com os radicais à direita, assemelhando-se e assimilando as suas posições, se mostrando-se moderada e competindo pelo exíguo espaço ao centro.

O drama ao centro na política francesa é duplamente preocupante. Porque uma França liderada por uma Le Pen ou por um Mélenchon é incompatível com a Europa da União Europeia. E porque o que se está a passar em França pode ser um pronúncio do que pode acontecer noutros lugares.

Felizmente, amanhã não há eleições em França. Mas se houvesse, com o que vemos hoje, o resultado podia ser catastrófico. Ganhasse quem ganhasse, o país sairia do consenso europeu e do grande centro. Enquanto isso não acontece, estes movimentos podem e devem ser uma lição para os outros Estados membros da União Europeia. A morte de parte do centro nunca é boa notícia. É só um pronúncio. Alimentar os radicais é o caminho para se lá chegar.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas