Opinião

Odemira: o respeito pelo território, pessoas e recursos é uma questão de sobrevivência

O Sudoeste de Portugal e o território de Odemira em particular atravessam um momento delicado e decisivo para trilhar um futuro no sentido de uma essencial compatibilização entre a qualidade de vida e a dignidade das pessoas, a conservação da natureza e as atividades económicas que aí se praticam

* Filipe Barrenho, Mário Encarnação e Sara Serrão

É neste contexto que veio recentemente um representante do sector dos frutos vermelhos do território em que convivem o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) e o Perímetro de Rega do Mira (PRM), clamar no jornal Expresso (e noutros) por mais água para regar os seus frutos em 2023, acenando, em caso contrário, com riscos sociais e económicos.

Ora, o movimento de cidadãos Juntos pelo Sudoeste, que tem vindo a apelar para a reposição de um equilíbrio perdido nesta região e a salientar a negligência do Estado Português na defesa do património ambiental do PNSACV, alerta para o facto de que, atualmente, fim do inverno, a reserva de água da barragem de Santa Clara — que abastece praticamente todo o concelho de Odemira — é inferior ao nível do pico do verão de 2022 e claramente não recuperou com as chuvas de outono.

O que é implícito mas mal explicado na referida solicitação por água é o apelo à “alteração das regras de distribuição”: poder captar água de Santa Clara a uma cota cada vez mais baixa e distribuí-la em função da produtividade e da capacidade de a pagar, medida disfarçada de eficiência hídrica, mas que promove não só a injustiça social mas também o abandono de culturas cruciais para a sustentabilidade alimentar e dos campos pelos pequenos produtores.

Também é de constatar que a gestão de água do Aproveitamento Hidroagrícola do Mira, há muito levada a cabo pela Associação dos Beneficiários do Mira, que até à data serviu os interesses da agricultura, parece já não se adequar à ambição de algumas fileiras, por se ter rendido à necessidade de ajustar - equitativamente - o consumo à escassez e respeitar os limites do território, que têm sido constantemente pressionados e ultrapassados.

Neste sentido, espanta-nos o atual alarme para os tais efeitos nefastos da redução de água para os frutos vermelhos, quando os seus danos ambientais e sociais são o que todos sabemos: uma degradação inquestionável dos valores e recursos naturais e da paisagem, e um fluxo migratório impossível de absorver, que tem gerado todo o tipo de abusos de direitos humanos e a proliferação de tráfico de pessoas, abrindo feridas profundas nas comunidades do Sudoeste, que ninguém consegue sarar.

Num ponto existe convergência no Sudoeste Alentejano: a infraestrutura do PRM necessita desesperadamente de investimento para que se evite o desperdício de água que ocorre há décadas; mas com o objetivo de constituir reservas para toda a região e não para “matar a sede” a novos investidores do agronegócio, até porque, verdade seja dita, se este fosse obrigado a contabilizar como custo o seu real impacto ambiental, social e até de perturbação de outros sectores económicos e investimentos públicos, o seu “valor acrescentado” não seria tão favorável como tem sido propalado. Na realidade, em vez de exigir a sustentabilidade que também beneficiaria o seu próprio sector, a agricultura intensiva reclama água que não existe, num perímetro de rega cuja dimensão começa a perder legitimidade por força maior, ou não fosse o fundamento de um perímetro de rega… haver água para regar.

Quanto ao aclamado crescimento demográfico de Odemira, relacionado com o fenómeno agrícola e aparentemente em contra ciclo com o resto do país, como se explica que o interior do concelho não resista à desertificação? Como se entende a perda de qualidade de vida e de serviços e infraestruturas públicas funcionais? Como se lida com a revolta da população perante o tráfico de seres humanos à luz do dia e todas as suas consequências? Como se admite que não se tenha acautelado as reservas de água e se corra o risco da região vir a penar sem água? Como se aceita a plastificação da faixa costeira entre Vila Nova de Milfontes e Odeceixe e a destruição de valores naturais raros, alguns deles únicos no mundo?

Portanto, em vez de se olhar para a realidade como ela é, repensando seriamente uma estratégia equilibrada para a região Sudoeste, respeitando os seus limites e redimensionando a atividade agrícola, o que tem prevalecido é uma proposta para continuar a esmagar esses limites — o sector do “ouro vermelho” quer crescer, custe o que custar, e pede água ao sector público, sendo que autoridades e legislação foram e continuam a ser desrespeitados nas suas decisões legais e tímidas tentativas de compatibilizar a economia e a preservação do território.

O Juntos pelo Sudoeste tem apelado a um esforço de compatibilização entre conservação da natureza e economia, um ordenamento sensível do território, uma visão integrada dos recursos dos quais todos dependemos, como um investimento para o presente e futuro que, bem gerido, traz qualidade de vida, um orgulho (perdido) e oportunidades para o tecido social da região aí construir as suas vidas e criar os seus filhos, se lhes for permitido. No sentido de uma mudança de paradigma de “desenvolvimento” de Odemira, é reconhecido que o potencial da região é enorme, saibamos nós respeitá-la.

* membros do movimento Juntos pelo Sudoeste

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