Em meados da década 30, Sir Austin Chamberlain, citou esta frase, que afirma ter sido veiculada por alguém na China: “Que vivas em tempos interessantes.” A expressão, conhecida pela sua ironia, reflete os tempos de transição paradigmáticos no Médio Oriente, com o novo acordo de reconciliação entre o Irão e a Arábia Saudita.
A restauração dos laços diplomáticos entre os dois países é fruto dos esforços e interesses chineses cada vez mais presentes na região, que contaram com a ajuda mediadora do Iraque e do Omã. No âmbito deste acordo histórico, ambos os países reabrirão as suas respetivas embaixadas nos próximos dois meses, sendo notável a decisão de voltarem aos dois acordos assinados anteriormente, sendo que um almeja a cooperação em assuntos de segurança, e o outro foca-se na promoção de laços económicos, comerciais e científicos.
Após anos de hostilidades e conflitos proxy, esta normalização de relações advém da política externa saudita que tem promovido o fim das disputas, a recuperação da estabilidade e a prosperidade como destino comum aos países na região. Por outro lado, o vácuo de poder resultante da retirada gradual dos Estados Unidos contribuiu para a presença expansiva de Pequim no Médio Oriente, revelando a sua faceta em tornar-se uma força global na resolução de conflitos internacionais.
Neste sentido, este acordo tem implicações regionais e internacionais. Os Estados Unidos, não tendo relações com o Irão desde 1980, estavam limitados a qualquer possibilidade de diálogo entre Riade e Teerão. A China posicionou-se como um ator crítico, cultivando boas relações com as duas partes, desafiando, assim, o papel dominante de Washington na governação global. Se o Irão e a Arábia Saudita cumprirem as suas promessas e reabrirem as embaixadas conforme acordaram, isto poderá significar um início na resolução da guerra no Iémen, sem, todavia, garantir o seu fim, já que existem outros atores locais envolvidos no conflito.
Paralelamente a esta reconciliação, debateu-se também a possibilidade de uma regularização de relações entre a Arábia Saudita e Israel. As implicações para que esta se torne real é agora condicionada, mas não impede o seu progresso. Os dois países têm cultivado relações não oficiais há alguns anos e é improvável que o processo pare, já que os mecanismos de normalização com os países do Golfo começaram em 2021, com o reconhecimento oficial e a abertura de embaixadas nos Emirados Árabes Unidos e Barém, e não demonstra sinais de que terminará.
A celebração deste acordo poderá ser vista como uma vitória para a estabilidade regional, contrariando as análises que explicam o Médio Oriente através das divisões sectárias, particularmente xiita versus sunita. Simultaneamente, indica uma nova reconfiguração, com mudanças geopolíticas que estão a criar uma ordem regional multipolar – na qual a dependência da Europa e dos Estados Unidos já não é viável. Se a Europa pretende manter-se um ator relevante na região, é necessária uma maior assertividade na sua política externa e, por outro lado, evitar a polarização do poder, usando a estrutura multipolar para o seu benefício. Deste modo, pode cimentar os seus interesses e fomentar mais cooperação regional.
Para já, é ainda prematuro afirmar se esta reconciliação será duradoura, visto que enfrenta vários desafios e depende da implementação das condições do acordo, dos vários interesses e da estratégia chinesa na região. Não deixa de ser curioso que a ironia dos tempos interessantes seja afinal uma maldição, aludindo aos tempos conturbados que vivemos. Quiçá este acordo se manifeste como um desejo para terminar com as décadas de instabilidade e as guerras na região, reduzindo as tensões e inaugurando uma nova era da geopolítica.
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