Opinião

A entrevista

A entrevista

José Matos Correia

Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD

Marcelo Rebelo de Sousa olhará para a sua entrevista, seguramente, na óptica do copo cheio. Eu não consigo ir para lá do copo meio vazio

Na política, como na vida, há momentos mais conseguidos e momentos menos felizes. A entrevista concedida pelo Presidente da República, na passada semana, que coincidiu com os seus sete anos de mandato, inclui-se, a meu ver, na segunda categoria.

Conhecemos todos, e bem, o estilo que Marcelo Rebelo de Sousa imprimiu ao exercício de funções e que é, aliás, extensão da sua maneira pessoal de ser e de estar. E como isso tem conduzido, com alguma regularidade, a uma indesejável sobreposição entre as suas responsabilidades, por um lado, e as suas tendências de analista, por outro. E, nesta entrevista, creio que o Presidente da República terá ido mais longe do que alguma vez fora nessa sobreposição.

Marcelo Rebelo de Sousa foi especialmente cáustico na apreciação que fez do Governo, utilizando expressões que não têm segunda interpretação possível. Falou em maioria requentada e cansada, aludiu à forma como o Governo nasceu e à respectiva orgânica, classificou o ano decorrido como um tempo perdido.

Se olhasse para esta avaliação, muito crítica, na perspectiva de militante do PSD, não só concordaria com ela, como até a classificaria como insuficiente. Mas eu sou um cidadão comum, politicamente empenhado é certo, que não só tem direito ás suas opiniões, como a dar pública nota delas.

Diferentemente, quem é Presidente da República está vinculado a obrigações institucionais e ao conteúdo essencial da função arbitral que elas envolvem. E isso, goste-se ou não, implica, por natureza, que o titular do cargo se contenha na transmissão de muitas opiniões que, enquanto mero cidadão, poderia livremente emitir.

Em matéria de relacionamento entre órgãos de soberania recorre-se, com frequência, ao conceito de solidariedade institucional, entendido como necessidade de conjugação de esforços entre todos eles, em ordem a assegurar os mecanismos e os equilíbrios indispensáveis à estabilidade do sistema. E tal solidariedade há-se ser concretizada desde logo nos actos, mas também nas palavras.

Quero com este raciocínio significar que ao Presidente da República está vedado criticar publicamente o Governo? É evidente que não. Bem pelo contrário, uma vez que isso seria negar a própria essência das tarefas que lhe estão cometidas e das responsabilidades que só a ele cabem.

Mas há uma óbvia distinção – ao menos para mim - entre a manifestação de uma discordância concreta (que pode traduzir-se numa declaração pública, no envio de uma mensagem à Assembleia da República, num veto, num pedido de fiscalização da constitucionalidade, etc.) e a verbalização de uma apreciação política subjectiva.

Exemplifico, para tentar ser mais claro: se, como disse, me parece infeliz que o Presidente da República qualifique uma determinada maioria política – qualquer que ela fosse - como “requentada e cansada”, já me parece totalmente compatível com o seu estatuto censurar o Governo por ter dado um período curtíssimo para a discussão política das iniciativas que apresentou em matéria de habitação. Porque ali emite uma opinião valorativa e aqui actua como garante do normal funcionamento das regras do jogo democrático.

Na mesma linha, afigura-se-me como totalmente desnecessária a abordagem que Marcelo Rebelo de Sousa fez da questão da dissolução parlamentar. Dizer que não renuncia ao poder de dissolução é uma evidência óbvia. Até porque fazê-lo seria juridicamente impossível e politicamente suicidário. Mas há coisas sobre as quais um Presidente da República não deve publicamente especular. Basta que as faça se o entender necessário e, claro está, no estrito respeito pelo enquadramento constitucional e tendo em conta a indispensável e fundada avaliação das condições políticas que subjazem à decisão que toma.

Não sei se, em obediência a uma lógica de compensações, Marcelo Rebelo de Sousa entendeu que deveria, também, estender às oposições as suas observações. E, do alto do seu magistério, sentenciou que “aritmeticamente, a maioria das sondagens mostram que neste momento os partidos de direita e centro-direita têm em regra maior percentagem, somados, do que os partidos de esquerda”. Mas aditou que não há, ainda, “uma alternativa política porque um dos partidos diz que recusa entender-se com um terceiro, por isso, não se somam os votos em termos de coligação”.

Estas frases merecem-me três notas. Em primeiro lugar, que não cabe ao Presidente da República fazer considerações públicas sobre os resultados apresentados nas sondagens. Em segundo lugar, que não compete ao Presidente da República conjecturar sobre como é que as soluções políticas alternativas se devem, ou não, construir. Em terceiro lugar, que não está na órbita de poderes do Presidente da República teorizar sobre se algum partido está, ou não, disponível para se entender com outro(s).

Isto dito, também vislumbrei na entrevista aspectos positivos, quer na substância das considerações que fez, quer no plano do respeito daquilo que, para mim, deve ser o papel presidencial.

Refiro-me, por exemplo, às muito judiciosas e certeiras críticas à desastrada maneira como a Conferência Episcopal Portuguesa reagiu à questão dos abusos sexuais de menores. Ao modo, extremamente equilibrado, como apelou ao entendimento entre professores e Governo no que toca á contabilização do tempo de serviço, ao mesmo tempo sublinhando como a recuperação integral lhe parecia financeiramente impossível. Ou à forma como mostrou estar atento às consequências da inflação, às dificuldades das famílias e à necessidade de lhes dar resposta.

Aludindo ao modo como ambos encaram a realidade, Marcelo Rebelo de Sousa sintetizou as diferenças com António Costa numa frase expressiva: “Ele (o Primeiro-Ministro) olha para o lado cheio do copo, eu olho para o lado meio vazio”.

No que toca à leitura global que faço da entrevista, socorro-me da mesma imagem. Marcelo Rebelo de Sousa olhará para ela, seguramente, na óptica do copo cheio. Eu não consigo ir para lá do copo meio vazio.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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