“Mais armas nucleares e menos controlo de armamento tornam o mundo mais perigoso”, disse o Secretário Geral da NATO, Jens Stoltenberg, em resposta ao discurso do estado da Nação do Presidente russo, Vladimir Putin, no passado dia 21 de fevereiro. As palavras de Stoltenberg fazem lembrar saudosamente as do último líder soviético, Mikhail Gorbatchov, que compreendeu o absurdo da mecânica divisiva da Guerra Fria, para o mundo, para a política e para a humanidade, contribuindo indubitavelmente para o seu termo, em 1989-1991. Gorbatchov já não está entre nós para observar a evolução do conflito russo-ucraniano, mas deixou-nos, em agosto de 2022, emocionalmente desolado com a luta destes dois irmãos que ele procurou unir e que lhe eram tão queridos.
O anúncio de Putin da suspensão unilateral do acordo New START (Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas) foi o que de mais substancial disse há dias, no seu discurso propagandístico, destinado a mobilizar a nação russa para a manutenção da autoproclamada “operação especial” sobre a Ucrânia. O tratado New START, recorde-se, foi assinado em 2010, entre Barack Obama e Dimitri Medvedev, e deveria durar, pelo menos, até 2026. Ao sair desse acordo, Vladimir Putin inverteu um caminho de desnuclearização do mundo encetado por Gorbatchov e Reagan, e continuado por Bush/Clinton e Ieltsin. O antigo líder soviético deve, pois, estar a dar voltas numa espiral infindável de tristeza e frustração, ao ver destruído o empenho pessoal e o trabalho coletivo dos seus anos de governo (1985-1991), a época em que os EUA de Reagan descobriram em Moscovo um interlocutor bem diferente da mitologia do “império do mal”, com que a URSS era tradicionalmente representada.
Não será, portanto, à União Soviética de Gorbatchov que os especialistas se referem quando falam num Putinismo revisionista e supostamente saudosista relativamente aos tempos áureos soviéticos. O estilo sisudo do atual Presidente russo e a prática de aparecer somente em momentos-chave aproximam-no mais dos antecessores de Gorbatchov, nenhum deles verdadeiramente preocupado com o fim da Guerra Fria, que Gorbatchov ajudou a liquidar e que, passado o incerto interlúdio da década de Boris Ieltsin (1991-2000), Putin veio “reaquecer”. A corrida armamentista, caraterística primordial da bipolarização da segunda metade do século XX, colocou a humanidade diante da ameaça da sua própria extinção durante décadas a fio. Gorbatchov e a sua Política do Novo Pensamento permitiram aliviar gradualmente esta condição, até que fosse possível ultrapassá-la. Face a estas e outras conquistas, os anos de Putin no poder têm significado um autêntico retrocesso; têm significado o regresso à tensão e ao medo, a uma sensação Estalinista de um mundo dividido em dois blocos e, sobretudo, a uma sensação de que, de repente, a guerra pode estar à porta. O “Putinismo” minou por completo o terreno de oportunidades de aproximação e cooperação entre a Rússia e o Ocidente, deixado por Gorbatchov aquando da implosão da URSS.
Nada disto significa, porém, que Gorbatchov premeditou a fragmentação do império soviético, nem tão pouco que desejou a sua extinção enquanto unidade geopolítica. Pelo contrário, quer do ponto de vista territorial, quer do ponto de vista ideológico, o seu projeto inicial era o de reformar o comunismo soviético no sentido de o reerguer e de lhe devolver a pureza dos seus princípios originários. Este projeto, tornado mundialmente famoso sob as bandeiras da “perestroika” e da “glasnost”, implicava a permanência do estatuto de “centro-todo-poderoso” de Moscovo face às outras catorze repúblicas socialistas soviéticas, assim como às não menos importantes denominadas democracias populares no Leste da Europa. Mas os tempos e os ventos de liberdade por estes tempos trazidos determinaram a vitória dos povos, das suas tradições e das suas escolhas. Gorbatchov optou por não lutar contra esta evolução natural, o que lhe valeu um Prémio Nobel da Paz, em 1990.
No essencial, o que o afasta de Putin não é tanto a matéria dos objetivos – porque o seu sonho também era o de uma União forte e coesa – mas antes a matéria dos meios. Gorbatchov também enfrentou pretensões separatistas; assistiu ao nascimento e ascensão dos primeiros movimentos populares organizados a favor da independência dos territórios da Europa de Leste; confrontou-se dentro do seu próprio país e do regime por ele comandado com os traidores que o tentaram declarar psicologicamente incapaz. O que importa para avaliar o seu impacto na História, assim como para o compreender em contraste com figuras como a de Putin, é o reconhecimento dos seus próprios limites, enquanto homem e líder, e de que, afinal, em política, não vale tudo. Putin teria muito a aprender com o saudoso “Gorby”, e o mundo muito menos a lamentar. São no mínimo Brejnev, talvez Estaline, seguramente o czarismo mais autocrático os modelos de poder e as tentações de grandeza que informam as ações de Vladimir Putin. Cada época teve os seus estadistas; a nós calhou-nos viver num tempo em que eles já não moram dentro dos muros do Kremlin.
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