Em 1919, Paul Valéry escrevia que são europeus todos os povos que tiveram Roma, a Grécia e o Cristianismo como influências primaciais. A nossa civilização está impregnada de Cristianismo. Da arte à educação, da música à arquitetura, da moral aos rituais, dos ideais ao calendário. Tal evidência torna duplamente dolorosa a confirmação de que a Igreja, o vértice do catolicismo que organizou aquela imparável força espiritual, também está impregnada de perversidade e tem sido porto seguro de predadores sexuais.
Suportando o insuportável, estremecemos de revolta ao ler ou escutar os relatos da inocência invadida no esconso da sacristia, no isolamento da aldeiazinha, nas “manhãs submersas” do seminário. Para além do sofrimento das vítimas, da supressão da sua liberdade e dignidade, impressiona que, para tantos, o culto da carne tenha tomado o lugar do culto, justamente na última instituição contemporânea cujo fundamento é de ordem metafísica.
No rescaldo do relatório Sauvé, que expôs, em 2021, centenas de milhares de casos de pedofilia na Igreja francesa, Nathalie Sarthou-Lajus, redatora da revista jesuíta Études, falou de uma "cultura de morte" no seio do clericalismo, que "destrói sujeitos em vez de os construir”.
Fomos ingénuos ou fomos pusilânimes? Afinal, a concupiscência e a libertinagem clericais são quase lendárias. A literatura ocidental abunda em frades, monges e prelados que se entregam desenfreadamente aos prazeres libidinosos. A historiografia documenta uma cultura de abusos sexuais e de ocultação dos mesmos. Os nossos trovadores e jograis do século XIII e XIV legaram-nos escárnios tão impiedosos quanto obscenos de tais depravações: os de Fernando Esquio, por exemplo, ou de Afonso Lopes de Baião, que escarnecia de um clérigo que, no código da época, ansiava por "madeira nova” para “talhar”.
Tenho lido alguns textos que, sem desagravarem os crimes em causa, relativizam o seu alcance, apontando para a predominância do abuso de crianças e menores no reduto da família. E porquê no reduto da família? Porque é um espaço privado, circunscrito, impermeável à vigilância e ao controlo externo, hostil à intromissão. É por isso que pode ser o espaço onde as crianças e adolescentes podem estar simultaneamente mais protegidas e menos protegidas. É essa dimensão secreta, opaca, que o espaço eclesiástico partilha com o espaço doméstico. Impensável, pois, é que nesta casa assaltada pelo mal se lancem trancas à porta em vez de a desaferrolhar.
Alguns fazem questão de nos lembrar que a Igreja é uma instituição humana, feita de homens – eufemismo para dizer que “a carne é fraca”? Mas não foi o próprio Santo Agostinho que, num sermão do ano 413, em honra de São Vicente, concluiu que o pecado não decorre da animalidade do corpo, mas da liberdade da alma…?
Não basta a inflexão retórica, mais ou menos enviesada, de alguns sacerdotes, como a do bispo do Porto, que não há muito desvalorizava o fenómeno como uma espécie de tara essencialmente anglo-saxónica. Os sacerdotes, não os crentes, são hoje os “vencidos do catolicismo” e as suas proclamações de vexame e comoção sabem a cinzas.
Ao poder político, hoje em dia forçado a uma transparência quase pornográfica, cumpre exigir transparência às instituições da sociedade civil. A nós, que há milénios aturamos o implacável moralismo da Igreja, cumpre-nos, enquanto indivíduos e enquanto comunidade politicamente organizada – enquanto Estado – emitir um juízo moral sobre a Igreja, sem reservas. Sobre essa Igreja que sacraliza a vida biológica, inconsciente, lançando o anátema moral sobre mulheres que, ao interromperem a gravidez, dispõem do seu corpo, mas depois pactua, pelo silêncio, com clérigos que dispõem do corpo dos outros, profanando vidas conscientes; essa Igreja que reprova os doentes terminais que não querem prolongar o seu martírio e que, ao mesmo tempo, encobre pastores que são causadores do martírio de pessoas na flor da vida
Não se trata de regressar ao credo anticlerical oitocentista professado por alguns dos nossos maiores, de Guerra Junqueiro e Gomes Leal, de Eça e de Antero, mas de confirmar a perenidade do mal na instituição eclesiástica, a persistência dos “maus padres” que eles increpavam de forma caricatural e estrondosa – os “falsos apóstolos” do poema panfletário de Guilherme Braga, de 1871.
A Igreja olhou-se ao espelho e não gostou do que viu. Foi isso um ato de coragem? É discutível. Mais além da punição dos verdugos e da compensação das vítimas, a verdadeira coragem será a que encontrar para se pôr em causa e, se for preciso, rever a sua dogmática, os seus fundamentos seculares, a começar pelo celibato e a terminar no ordenamento de mulheres. Não creio que alguém deseje verdadeiramente a derrocada da Igreja Católica. Mas, depois das conclusões da Comissão Independente presidida por Pedro Strecht, se a Igreja não for capaz de se reformar a si própria de alto a baixo, a derrocada é provavelmente aquilo que lhe está reservado e aquilo que merece.
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