Opinião

A velha social democracia e o rato populista

É um erro que o PPD/PSD admita coligações com o Chega. Há razões para o crescimento do Chega que só têm a ver com o PPD/PSD: a inépcia, a cobardia ou, vá, no melhor cenário, o erro de avaliação estratégica. Sempre que a velha cai, sempre que a velha treme, o rato avança, o rato come

De cada vez que digo que é um erro que o PPD/PSD admita coligações com o Chega, há pelo menos uma resposta que obtenho sempre: lá estão vocês com essa conversa; com essa atitude ainda os vão fazer crescer mais. Quando ouço isto tenho sempre duas atitudes: primeiro, pasmo; depois, pasmo outra vez.

A verdade é que é mentira. A direita populista cresce por várias razões, algumas das quais facilmente compreensíveis, muitas que já tratei noutros artigos, mas, seguramente, haver quem com ela não queira fazer coligações não é uma delas. Há, porém, razões para o crescimento do Chega que só têm a ver com o PPD/PSD: a inépcia, a cobardia ou, vá, no melhor cenário, o erro de avaliação estratégica.

Não vou hoje deter-me nas razões substantivas, ideológicas, que justificam a minha posição - nada inovadora, de resto - de quanto uma aliança entre o PPD/PSD e o Chega é contra-natura e o quanto macula não só a sua história, como compromete também o seu futuro.

Corre por aí uma tese, à direita, de que o principal problema do país é o socialismo e o PS. Digo expressamente socialismo e PS não por redundância ou lapso, mas porque havendo zonas de sobreposição nem sempre ambos querem dizer a mesma coisa, embora em qualquer caso signifiquem sempre prejuízo para o país. Adiro a esta tese; e anos de artigos de opinião atestam, sem margem para dúvida, a minha declaração. Mas há uma declinação da tese que diz que o principal objectivo da direita deverá ser substituir - a qualquer custo - o PS no poder. E é aqui que divergimos. O principal objectivo da direita deverá ser querer um caminho alternativo para o país. E é porque alternativa é diferente de alternância, que não serve um caminho qualquer, não serve o mesmo caminho, não serve uma aventura temerosa, não serve uma experiência sem guião.

A direita tem que ter um programa alternativo ao socialismo e ao PS. Um amplo programa de reformas estruturais, da saúde à educação, da justiça à segurança social, das funções do Estado à administração pública, da segurança à economia, do sistema fiscal à demografia. E, se não for pedir muito, dar um módico de esperança a quem ambiciona mais do que receber 125 ou 240 euros de esmola, a quem quer viver sem precisar dos apoios sociais que permitem, com dificuldade, manter a cabeça acima do limiar da pobreza. Portugal não tem que ser isto.

Luís Montenegro, líder do partido que melhores condições tem para dar esta resposta, teve, todavia, entre o final do ano e as primeiras semanas de Janeiro, um período horribilis auto-infligido, iniciado com a sua ausência do país durante a implosão moral do Governo, passando pela incapacidade de lhe votar favoravelmente uma moção de censura, e culminando com um acto falhado, na entrevista que deu à SIC: "o PSD está a preparar-se para ser Governo".

Lamento, Luís, mas há três coisas que o país não percebe: primeiro, quando a coisa escalda, o português olha à volta à procura do chefe, e o chefe não estava lá; depois, com o Governo mais inoperante e incompetente de que há memória, e em acentuado colapso moral, não compreende que quem lhe queira suceder não o censure; finalmente, não é aceitável que, depois de sete anos na oposição, aquele que já foi o maior partido do país, das forças vivas da sociedade civil, da pequena burguesia, de funcionários, de profissionais liberais, da defesa da Liberdade, da prosperidade e do elevador social, diga ao país que "se está a preparar". Se se está a preparar, é porque não está preparado. E aqui falo de inépcia.

Há depois uma outra tese que diz que com o crescimento do Chega é impossível um Governo à direita sem esse partido. Ouço isto desde o tempo em que o Chega tinha apenas um deputado. Hoje tem 12 e a avaliar pelas sondagens a coisa é capaz de não se ficar por aí. É uma espécie de profecia auto-realizada. O problema é que a tese é falsa, a menos que quem tem responsabilidade e poder para o contrariar não o fizer. Primeiro, um governo minoritário não seria inédito em Portugal, e no caso do governo minoritário ser do PPD/PSD, o ónus de o entregar ao PS seria do Chega e o ónus de fazer crescer ainda mais o Chega seria do PS; e depois disso, as contas seriam outras. Segundo, porque o crescimento do Chega não é inexorável, até porque os eleitores não são propriedade dos partidos. Se o PPD/PSD se resigna a esse crescimento, sem disputar os eleitores, já não é um velho e grande partido, é só uma velha toda partida. E aqui falo de cobardia.

Finalmente, há uma última tese: se o PPD/PSD levar o Chega para o Governo, a responsabilidade amacia-lo-á, primeiro, e esvazia-lo-á, depois. No fundo, esta tese evoca, explícita ou implicitamente, o abraço de urso que Mitterrand deu ao Partido Comunista Francês. O problema desta tese é que não é um, são dois: o primeiro, é que Luís Montenegro não é François Mitterrand; o segundo, é que o Chega não é o PCF, e o movimento político ascendente em que aquele se insere contrasta com a decadência do comunismo em que este se inseria. Por outro lado, há duas perguntas que os defensores desta tese têm que responder: quem tiver vontade de votar Chega e vontade de derrubar o PS, qual é o incentivo para votar PSD?; e como é que assim conquistam eleitorado ao centro, que repudia o Chega, e que é essencial para vencer eleições? Há outra coisa que esta tese esquece: tal como noutros países, partidos que outrora foram partidos de Governo implodiram e deram lugar a novos partidos, com outras linguagens, com outras agendas. Não é seguro que o PPD/PSD não seja devorado pelo Chega. E, como me diz um amigo, no lugar de ser o Chega a exigir 5 ou 6 pastas ministeriais ao PSD, acabe por ser o PSD a ter que as pedir para si ao Chega. Um cenário em que, para contas que importem, o PPD/PSD e o CDS sejam substituídos pelo Chega e pela IL não é de pôr de parte. E aqui falo de erro de avaliação estratégica.

Nada disto é novo. Mario-Henrique Leiria, que no mês passado teria feito 100 anos, no seu Contos do Gin Tónico, descreveu esta dinâmica na cegarrega A Velha e o Rato. Deixo-a aqui, para reflexão:

A Velha dormindo / o rato roendo / a Velha zumbindo / o rato correndo / a Velha rosnando / o rato rapando / a Velha acordando / o rato calando / a Velha em sentido / o rato escondido / a Velha marchando / o rato mirando / a Velha dizendo / o rato escutando / a Velha ordenando / o rato fazendo / a Velha correndo / o rato fugindo / a Velha caindo / o rato parando / a Velha olhando / o rato esperando / a Velha tremendo / o rato avançando / a Velha gritando / o rato comendo.

Sempre que a velha cai, sempre que a velha treme, o rato avança, o rato come. Eu vou ali tomar um Gin Tónico.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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