Opinião

A corrupção não pode ser o preço a pagar pela democracia

A corrupção não pode ser o preço a pagar pela democracia

Euclides Dâmaso

Procurador-geral adjunto jubilado

O procurador-geral adjunto jubilado Euclides Dâmaso não é daqueles que considera que no seu tempo é que era, mas critica os procuradores que escrevem demais, deixam os prazos correr até ao último dia e põem em causa a imagem da Justiça

Não sou dos que pensam que no seu tempo tudo era melhor. Iniciei-me na carreira do Ministério Público, com a lendária designação de Delegado do Procurador da República, há perto de quarenta e cinco anos e reconheço que assim não era. Desde logo porque nessa época todo o sistema judiciário vivia alheado de uma realidade tão gritante e danosa como a criminalidade de colarinho branco. Pelos tribunais penais quase só desfilavam actores do mais puro neorrealismo cinematográfico, ladrões de bicicletas ou feios, porcos e maus, como titulavam as fitas de Vittorio de Sica ou Ettore Scola. Do resto, ninguém cuidava. É triste, mas é verdade. Essa tibieza só mais tarde se quebrou, com a minha geração, e não foi glória fácil.

Mas havia padrões de postura e procedimento que passavam de geração em geração como virtudes, através do contacto dos mais velhos, fossem Juízes ou Delegados, com os principiantes, nesses tempos em que não tinha sido ainda criada a escola de formação de magistrados.

Um deles era o cultivo da síntese nas peças processuais, o que muito contribuía para reduzir a duração dos processos a tempos aceitáveis. A escrita era manual e não facilitava devaneios excessivos. Os despachos de arquivamento ou de aguardo de melhor prova só eram perfeitos quando sumariamente expressavam compreensão da matéria de facto recolhida e o seu tratamento à luz do direito de forma enxuta e clara para os destinatários. E as peças acusatórias, idealmente articuladas, tinham dimensão vinte vezes menor do que na atualidade, sendo certo que são praticamente idênticas as exigências formuladas pela lei para o efeito. A acusação de magnicídio tentado na pessoa do Papa João Paulo II em Fátima, por exemplo, cabia em pouco mais de uma página.

Outro padrão era a rigorosa compatibilização da duração da investigação com o prazo da prisão preventiva. Era assumido como falta grave que o arguido tivesse que ser restituído à liberdade, por esgotamento do prazo, sem que a acusação estivesse deduzida. Desse infausto acontecimento tomaria nota a hierarquia, naturalmente respeitada, como acto negativo que não deixaria, pelo menos, de ser levado em conta na inspecção e classificação do desempenho quer do magistrado titular do processo quer do seu imediato superior.

Outra boa prática, recomendada insistentemente, que vinha do fim dos tempos como expressão de prudência e sensatez, era não se deixar para o último dia do prazo a realização de um acto processual. Muito em especial quando houvesse dúvidas acerca da contagem do prazo que pudessem levar à frustração do nosso objectivo, o que seria então considerado temeridade absoluta. Recomendava-se, além disso, o maior comedimento na utilização do mecanismo processual de extensão dos prazos, lembrando-se que não era regra mas excepção, tanto mais que o Ministério Público estava isento do pagamento da multa inerente

E evitava-se, sobretudo, a sobre exposição mediática da investigação, de modo a não comprometer o seu sucesso e a diminuir os riscos de um indesejável trial by newspaper. Foi assim, tendencialmente, até aos princípios da década de 90. Havia consciência de que um inquérito interminável vazado frequentemente para a comunicação social tornava-se, com o passar dos anos, factor de descrédito na acção da Justiça e punição espúria dos investigados.

Em suma: todos sabíamos que havia que manter a compostura adequada à elevada posição que, supra partes, detínhamos na cena judiciária. Compostura essa que passava também por adequado distanciamento em relação às causas, potenciador de objectividade e da máxima isenção: ao Ministério Público apenas interessa a realização da Justiça, quer ela se traduza em condenação ou absolvição do arguido. O Ministério Público, investigando à charge et à décharge, apenas persegue a verdade e só ganha se a alcançar. Por isso, devendo o magistrado ser estudioso, metódico, corajoso e combativo, mal vai que se deixe tomar de paixão, perca a serenidade própria de quem actua com poderes de autoridade e enverede por qualquer tipo de exasperação ou encarniçamento persecutório. Coisa que, dizia-se então, era mais própria de polícias, mas que ao Ministério Público competia refrear.

E era assim que, apesar da juventude, com ou sem beca por cima, nos fazíamos respeitar. Enfim, lembranças da velha escola no começo de um novo ano, preocupado com vícios operacionais e com o dano que poderão causar à imagem da Justiça. Antes que subterraneamente comece a instalar-se a ideia perversa de que a corrupção é o preço a pagar pela democracia.

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