Opinião

Os extremos, obviamente, tocam-se

Os extremos, obviamente, tocam-se

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

Os radicais e extremistas à direita e à esquerda não têm o menor apreço pelo Ocidente. Porque não é cristão, ou porque é imperialista; porque está capturado pelas elites globalistas; porque é Sodoma e Gomorra, ou porque não deixa ser. Tanto faz

Há menos de dois anos, a 31 de maio de 2021, o líder do Chega exibia-se em Fátima, de joelhos, a rezar com o líder da Liga Norte (aliás, Liga para Salvini Primeiro-ministro). “Hoje tive dois privilégios: o de rezar em Fátima e o de fazê-lo ao lado de Salvini! Por uma Europa de valores!”, escreveu então. Desta vez, André Ventura escondeu Matteo Salvini num armário. Foi pena. Se o líder da extrema-direita italiana tivesse vindo à convenção do Chega, ficava mais clara a farsa. A cumplicidade. E a curta distância que separa os extremos de ambos os lados.

Esta “Europa dos valores” corresponde aos supostos valores da Cristandade que os apoiantes de Trump tanto admiraram sempre em Putin. Num passado não muito longínquo, Ted Cruz comparava um cartaz do exército russo que exibia homens musculados e um do exército americano, onde aparecia uma mulher militar filha de um casal de lésbicas. Naturalmente, o exército poderoso seria o dos homens musculados. (Como se tem visto, de resto.)

Tucker Carlson, o apresentador da Fox que é uma espécie de porta-voz do trumpismo, nunca escondeu a sua admiração por Putin e, como se viu quando Zelensky foi ao Congresso americano, o seu desdém pelo Presidente ucraniano e pela luta da Ucrânia. Tudo gente que teria sido bem recebida numa convenção do Chega. Tal como Salvini que, tal como aparecia em Fátima, de joelhos, a rezar com Ventura, se fazia fotografar em Moscovo, na Praça Vermelha, com uma T-shirt com a cara de Putin. Sempre em nome dos mesmos valores. E Donald Trump, que já disse repetidas vezes que Biden praticamente provocou a Rússia a invadir a Ucrânia e nunca escondeu a sua admiração pela masculinidade de Putin, também seria certamente bem-vindo.

O fascínio da extrema direita e da direita vergonhosa com Putin tem duas explicações simples. Por um lado, a polarização. A tradição sempre mandou que, no essencial da política externa, Democratas e Republicanos estivessem de acordo. Até na invasão do Iraque, o partido democrata dividiu-se. Houve 126 que votaram contra, mas 83 estiveram a favor. Contra a intervenção no Afeganistão, só houve um voto em todo o Congresso. Hoje em dia, porém, a direita trumpista odeia tudo o que os Democratas façam ou digam. Ao ponto de preferir não prejudicar Putin a apoiar Zelensky.

A outra razão para o fascínio por Putin é a confusão que essa espécie de direita faz entre os seus valores e o que é o Ocidente. Para esta gente, o Ocidente não é a liberdade, a democracia, ou o livre mercado. Na verdade, não apreciam a liberdade, duvidam da democracia e não convivem nada bem com a economia de mercado. Para eles, o Ocidente é a sua ideia de religião aplicada à política, um ódio absoluto a tudo o que seja diferente e a recusa da globalização e das suas elites. Por isso, quando Putin diz que o Ocidente está em decadência, eles concordam, entusiasmados

Tal como Salvini em 2023, Jannis Varoufakis, Jeremy Corbyn ou Noam Chomsky nunca teriam participado numa convecção do Chega. Mas podiam juntar-se com Salvini, Trump, Órban ou Marjorie Taylor Green (provavelmente, a política menos alfabetizada a pisar o chão do Congresso americano) e concordar longamente sobre a culpa ocidental na guerra da Ucrânia.

Chomsky, o intelectual americano preferido da esquerda radical, deseja que a América pare o envio de armas para a Ucrânia, com o terrível propósito de diminuir a Rússia. Os “socialistas progressistas” americanos não perdoam à até então heroína, Alejandra Ocasio Cortez, não se ter oposto ao apoio à Ucrânia.

Jeremy Corbyn, o ex-líder mais à esquerda do Labour, condena a invasão russa, mas acha que armar a Ucrânia é o que impede a paz. (O que, de certo modo, é verdade. Se os ucranianos não conseguirem defender-se, acaba a guerra. E a Ucrânia. Mas isso não parece ser um problema para Corbyn.)

Jannis Varoufakis, que persistiu no radicalismo quando o Syriza de Tsipras se moderou, não tem dúvidas em responsabilizar o Ocidente pela guerra, sem deixar de condenar a invasão. E a sua convicção da culpa ocidental resulta da sua convicção de que o Ocidente não quer a democracia e que o modelo económico ocidental não presta.

Na maior parte dos temas, esta gente pode parecer, e ser, diferente. Mas o que os une na oposição ao apoio à Ucrânia é, no fundo, o mesmo. Nenhum deles, os radicais e extremistas à direita e os radicais e extremistas à esquerda, tem o menor apreço pelo Ocidente. Porque não é cristão, ou porque é imperialista; porque está capturado pelas elites globalistas; porque é Sodoma e Gomorra, ou porque não deixa ser (salvo seja). Tanto faz.

Esta semana, duas histórias vieram desmontar as teses que os apologistas da Rússia gostam de espalhar. Numa, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos reconheceu que a Rússia ocupa a Ucrânia desde 2014. Não há separatistas pró-russos, há uma ocupação russa. Que terá algum apoio em algumas populações. A diferença é, obviamente, enorme. A outra história está a passar na BBC2, em três episódios (Putin vs West) e mostra como o Ocidente foi complacente com a Rússia em 2014. Como diz o ex-presidente francês Francois Hollande, “quando não punimos no início, somos forçados a punir com mais severidade depois”. O erro ocidental não foi pressionar demasiado a Rússia, foi ter deixado Putin chegar onde chegou. Coisa que os radicais, de ambos os lados, não acham.

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