Opinião

“O Governador”, alguns erros e omissões

“O Governador”, alguns erros e omissões

António Cabral

Antigo funcionário da Comissão Europeia

Os bastidores dos dias quentes do pedido de resgate feito por Portugal. A análise dos factos, à luz do livro "Governador", feita por um dos conselheiros económicos próximos de Durão Barroso durante a presidência da Comissão Europeia

Li o livro “O Governador”, da autoria de Luis Rosa (LR). O capítulo 11, “A troika de Sócrates, Constâncio & Barroso e o memorando de entendimento”, título de razoável mau gosto, reteve a minha atenção. Deparei-me com alguns erros e omissões, em particular no que é dito sobre a Comissão Europeia por um lado e sobre o FMI, por outro. Afigurou-se-me necessário esclarecê-los e corrigi-los.

No que toca à Comissão Europeia. O seu presidente, Durão Barroso, nos contactos, cada vez mais regulares que foi mantendo com o PM de Portugal, Sócrates, informava-o sobre como Portugal era visto no contexto, muito complicado, da situação do euro, alertava-o para os riscos que Portugal estava a correr, dava a Sócrates a sua opinião - eventualmente o recurso a ajuda externa -e manifestava a disponibilidade da Comissão para ajudar, caso solicitada, naquilo que estivesse ao seu alcance. Mas sempre respeitando a soberania de Portugal e do seu governo: a ele, e só a ele, cabia tomar as decisões que considerava mais apropriadas para o país.

Ora, como é amplamente sabido, Sócrates, nunca admitiu, nem quis, até à última hora, fazer um pedido de ajuda financeira externa. Assim sendo, para que Durão Barroso (não me compete falar sobre Trichet nem Constâncio) evitasse aquilo a que LR chama um erro “fatal” (página 135) para Portugal!! deveria, atempada e publicamente, ter “obrigado” o PM de Portugal, José Sócrates, a pedir ajuda financeira externa!

Não teria qualquer sentido, nem político nem legal. Um pedido de assistência financeira externa é uma decisão de tal maneira séria, que compete, exclusivamente, ao próprio país. Mal andaríamos se assim não fosse. Já aquando das conversas com Papandreou, PM da Grécia, na primeira metade de 2010, e com Cowen, PM da Irlanda, em novembro de 2010, Durão Barroso não considerou a possibilidade de ser ele a desencadear o pedido de ajuda externa desses países. Em suma, a insinuação feita por LR que Durão Barroso (e Trichet) estavam a empurrar Portugal “para cima do precipício” não tem cabimento, e é grave.

Devo confessar que LR me deixou com uma dúvida. Se era tão evidente que Portugal estava a caminhar para o precipício, porque razão o Governador Carlos Costa só enviou as cartas (“a bomba atómica”) ao Presidente Cavaco Silva e a Mário Soares no início de abril de 2011? Porque não o fez em setembro de 2010, “quando Carlos Costa e o FMI estavam conscientes da necessidade de um resgate de Portugal”? (página 116). Pois.

Passemos ao FMI e DSK (Dominique Strauss Kahn, Diretor-Geral do Fundo). Ao contrário do que afirma LR, o FMI não participava no Eurogrupo. Era convidado para estar presente, e poder usar da palavra, exclusivamente para os pontos de agenda que tinham a ver com programas de assistência externa em que o Fundo participava. Terminado o ponto da agenda em questão, o FMI abandonava a sala. Nem podia ser de outra maneira. Por outro lado, como é que LR chegou à conclusão que o FMI foi o único a achar que Portugal precisava de um resgate? Perguntou a todos os “outros”?

Confesso que fiquei chocado por, nas páginas 138 a 145, abundarem as referências ao FMI e nenhuma menção ser feita aos mecanismos europeus de assistência financeira, aqueles a que, a haver auxílio externo, Portugal teria de recorrer.

Como é sabido ver, por exemplo, o meu artigo A génese do Mecanismo Europeu de Estabilidade, publicado no Expresso online de 3/10/2020 desde meados de 2010 que a EU dispunha de mecanismos de assistência financeira o FEEF (Fundo Europeu de Estabilidade Financeira) e o MEEF (Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira) para os países da área do Euro em dificuldade. Mecanismos que passaram a garantir, a esses países, a possibilidade de receber assistência financeira, europeia, não fosse o “bafo” dos mercados financeiros aquecer e atingi-los, em particular os mais endividados. A era do monopólio do FMI, para assistência financeira os países do Euro, estava terminada.

Contudo, discutiu-se se o FMI deveria, ou não, participar nos mecanismos europeus. Muitas foram as vozes que se opuseram a tal, quer no seio da Comissão quer no Eurogrupo, argumentando-se haver o risco de ingerência do FMI no funcionamento da área do euro, política monetária incluída. Acabou por se aceitar, e bem, a sua participação na condição de respeitar estritamente as regras da economic governance da área do Euro.

LR revela assim um mind set que parou antes da criação do FEEF e do MEEF, uma alteração de tomo para a governance da área do euro. Omissão grave, pois LR está a escrever sobre o pensamento do ex-lider do Banco de Portugal.

Sobre DSK, de quem guardo excelente memória pois acompanhei Durão Barroso nos encontros e conversas que com ele teve. Segundo LR, DSK “foi um elemento crucial na gestão da grande crise financeira, em particular na EU” (página 139). Ora bem, a gestão, global, da grande crise financeira foi feita pelo G20 - a nível e Chefes de Estado e de Governo, as “Cimeiras”-, na sequência de um encontro em Camp David, entre Buch, Sarkozy (Presidência rotativa da EU), e Durão Barroso, em outubro de 2008, onde discutiram como organizar uma resposta global à crise, também ela global. A UE é membro (“fundador”) de pleno direito do G20; o FMI participa nas Cimeiras como convidado, não é membro do G20. Escapa-me, por completo, o papel de DSK na gestão da crise financeira na UE. LR saberá, talvez um dia nos explique.

Mais ainda, para LR, DSK “influenciou de forma determinante o pensamento dos Ministros das Finanças do Eurogrupo”. Será que LR acha que os ministros das Finanças do Eurogrupo a que DSK não pertencia, como dito acima não conseguem pensar pela própria cabeça?

Finalmente, uma palavra sobre a negociação do memorando de entendimento e daquilo a que LR chama a, “lentidão de vontade da Comissão e do BCE, que já vinha de trás”. O que quer isto dizer? Que a Comissão, e o BCE, foram preguiçosos?

Vejamos. A Comissão Europeia partiu para as negociações do memorando de entendimento do Programa de Ajutamento Económico e Financeiro (PAEF) com muito avanço sobre o FMI. A deterioração da situação orçamental / económica portuguesa foi exigindo uma atenção redobrada por parte dos serviços da Comissão (principalmente a DG Ecfin, Direcção-Geral dos Assuntos Económicos e Financeiros); estava-se, então, em plena “crise das dívidas soberanas”. As discussões da DG Ecfin com os colaboradores diretos do Ministro da Finanças sempre muito bem preparados passaram a incluir, de modo informal, a possibilidade de Portugal recorrer a um Programa de Ajustamento. Discussões sempre leais e construtivas, como foi o caso do documento apresentado por Sócrates à margem do Conselho Europeu de 11/3/2011, que acabou por ser o “pai” do PEC4 e, a fortiori, do PAEF.

O memorando de entendimento já estava, pois, praticamente elaborado com a Comissão quando as negociações formais começaram. Exceto, talvez, na parte relativa ao setor financeiro, em que o Banco de Portugal, naturalmente, tinha de ser o chef-de-file; mas apenas do setor financeiro, o que talvez justifique a “mágoa” do Governador Carlos Costa sobre o tratamento que lhe deram as instituições europeias (ver página 136). Mas cada instituição tem a sua “pradaria”, certo? Mais a mais, o problema, seriíssimo, com que Portugal então se defrontava estava nas finanças públicas e reformas estruturais e não, prioritariamente, no setor financeiro. Concluindo: nem o FMI foi o “condutor do carro das negociações” nem a Comissão padeceu de “lentidão de formação de vontade”. Não, LR, nem o FMI é uma lebre, nem a Comissão e o BCE são tartarugas.

Uma última palavra, sobre o envelope financeiro do PAEF. O FMI avançou com 26 mil milhões de euros, o que, para LR “por aplicação do princípio da paridade entre as três instituições” implicou um envelope financeiro total de 78 (= 3x26) mil milhões de euros”. Só que o princípio da paridade levaria a um montante total de 52 mil milhões, porque o BCE não podia entrar nem com um cêntimo. Bizarro: o FMI que, segundo LR, sempre soube que Portugal teria de pedir assistência financeira e tudo o resto, estava disposto, chegada a hora da verdade, a contribuir com apenas 26 mil milhões de euros…Pois. A UE, ou seja, o contribuinte europeu, entrou com os restantes 52 mil milhões de euros. A solidariedade europeia salvou Portugal.

* António Cabral foi Senior Economic Adviser do Presidente da Comissão Europeia (2004-2014)

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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