Opinião

Mais vale um terço de Moedas do que um rosário socialista completo

Se o país não quer passar o vexame do fracasso, mais vale agradecer ao terço de Moedas, que faz, do que à obscuridade e inoperância do rosário socialista, que só promete

A 27 de Janeiro de 2019, o Presidente da República anunciou que a próxima Jornada Mundial da Juventude seria em Portugal. Os termos do anúncio falam por si, pelo mensageiro e, para ser justo, também pela portugalidade. Ninguém, de forma séria e responsável, perguntou quanto é que a coisa ia custar. O costume: na hora da bambochata, não queremos cá gente chata.

Hoje, porém, o que não falta por aí é gente a discutir a natureza do evento. Não é o meu caso. O que interessa, nesta altura, se não abdicámos irremediavelmente de ser qualquer coisa decente como país, é que Portugal, pelos seus mais altos dignitários, assumiu um compromisso perante o mundo e, a menos que queira considerar o vexame de não o cumprir, resta-lhe cumpri-lo com dignidade.

Uma breve analepse: em 2019, no Governo estava o PS, liderado pelo ex-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, e na Câmara Municipal de Lisboa estava o PS, liderada pelo actual Ministro das Finanças, Fernando Medina. Em Belém (e em todo o lado), o omnipresente Marcelo.

Passaram-se 1.464 dias (quase 1.500) entre o anúncio e o dia de hoje. E 491 dias (quase 500) entre as eleições autárquicas, em que Carlos Moedas foi eleito para governar a capital, e o dia de hoje. Durante o primeiro período, chamemos-lhe o da hegemonia socialista, passaram 973 dias (quase 1.000) e pouco foi feito, mas apesar disso e já depois disso, o Governo, a 11 de Outubro de 2021, ainda teve a lata de nomear como coordenador do evento o inefável Sá Fernandes, um conhecido "santo" da cidade de Lisboa, cujos prodígios se contam em 4 milhões. De euros. Eis mais um prodígio: basicamente, o preço da factura da sua "cidadania", quando quis impedir a construção do túnel do Marquês, é igual ao preço do altar-palco. Percebe-se a agitação, mas não se percebe a falta de vergonha.

Adiante. Dizia que nada de relevante e estrutural tinha sido feito em 1.000 dias, e que a responsabilidade de dar corpo a este evento de escala planetária tinha ficado nas mãos de Carlos Moedas; responsabilidade sobre a qual passaram agora apenas 500 dias. Um terço do tempo total. Um terço. Profético, não é?

Nesses 500 dias, sobre a JMJ, em Agosto do ano passado, o executivo de Moedas alertou que “quando tomou posse, sobre este tema em concreto, não existia um documento oficial sobre as responsabilidades e competências de cada um dos envolvidos no processo”. E, de caminho, assegurou uma dotação de "21 milhões de euros, praticamente o dobro do que encontrámos no início do mandato”. Houve quem risse: ai, o Moedas está a contar trocos? Houve quem se indignasse: mas a direita está a levantar problemas à vinda do Papa?

Esta semana, porém, para não inocente alívio de um Governo em colapso moral, o spin virou as baterias para Lisboa e, particularmente, para Moedas: o altar-palco custa 4,2 milhões de euros. Vestes rasgadas e ranger de dentes. Até eu me contorci.

Mas, e presumindo que não há por aí nenhum simplório que queira atribuir a culpa disto também a Passos, de quem é a culpa desta vez?

Vejamos. O PS, em 1.000 dias, na Câmara e no Governo, não fez quase nada; nada de novo aqui. Moedas, em 500, teve que tratar de quase tudo. Definiu um plano, dotou o orçamento da CML de verba necessária para o efeito, consultou a Igreja quanto às necessidades para a construção do altar, consultou 7 entidades usando as especificações que recebeu, negociou a redução de preços das diversas propostas e chegou aos 4,2 milhões. É muito? Eu acho que é. Mas eu percebo tanto de engenharia quanto os socialistas percebem de economia.

Mas há uma coisa que falta dizer: porquê o ajuste directo? A regra diz que os ajustes directos para empreitadas de obras públicas só se podem fazer até 30.000 euros. Mas isso é a regra. Toda a gente sabe que o PS é a excepção à regra. E por saber o que não tinha feito nos primeiros 1.000 dias, inscreveu pelo seu próprio punho um artigo na Lei do Orçamento de Estado a prever essa possibilidade para contratos desta natureza e neste âmbito até 5,3 milhões de euros.

Se Costa ou Medina ainda fossem presidentes da Câmara, se Miguel Alves - o tal do adiantamento de dinheiros públicos para a construção do pavilhão fantasma em Caminha - ainda lá fosse assessor, se Joaquim Morão ainda lá tivesse uma avença para controlar as obras, o ajuste directo ter-se-ia feito seguramente. E se alguém se atrevesse a perguntar, a resposta seria qualquer coisa como: está tudo legal (podem ler em português de Portugal ou em português do Brasil, funciona das duas maneiras).

Mas não foi esse o caso. Liderada por um gestor experiente e competente, a SRU, a empresa municipal com esta incumbência, apesar da faculdade que a Lei do Orçamento lhe dava e da urgência que o cronograma lhe impunha, fez uma consulta exigente ao mercado: 7 empresas, vários orçamentos. E, no final, 4,2 milhões, o valor mais baixo apresentado. Para dar resposta a quê, a algum interesse particular da CML? Não, para dar resposta às especificações que a Igreja Católica definiu. Ou foi a CML que se lembrou de ter 2.000 pessoas em cima do palco?

Podemos criticar Moedas por várias razões. As críticas são próprias da, e saudáveis em, democracia. Mas criticar - aberta ou veladamente - Moedas por causa da JMJ é injusto e irresponsável. E se as críticas - abertas ou veladas - vierem de quem partilha também responsabilidades nesta matéria são, adicionalmente, hipócritas.

Eu, se fosse Carlos Moedas, chamava toda a gente para uma reunião de urgência: Governo, Câmara Municipal de Loures e Igreja. E convidava até, comcerimónia, o Presidente da República a juntar-se à mesma. E se o Presidente da República aceitasse o convite, marcaria não uma, mas duas reuniões, em dias diferentes, não fosse o mais alto magistrado da Nação mudar de opinião sobre os assuntos discutidos. Comunicação antes da ordem de trabalhos: a CML está comprometida em fazer do evento um sucesso, mas quer gastar o mínimo possível. Ponto único da ordem de trabalhos: rever todos os requisitos. Todos. Desonerar toda a operação: menos clero no altar, menos pompa, menos logística, menos zonas VIP, menos figuras no protocolo de Estado. E o dr. Sá Fernandes também pode ir à sua vida. D. Américo Aguiar diz que ficámos todos "magoados". Talvez seja tempo de mostrarmos as mágoas de cada um, e de levarmos isto tudo às últimas consequências.

Repito-me e concluo: se o país não quer passar o vexame do fracasso, mais vale agradecer ao terço (de tempo) de Moedas, que faz, do que à obscuridade e inoperância do rosário socialista, que só promete.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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