Há duas semanas perguntava aqui se, ceteris paribus, Sócrates seria melhor que Costa. Errei na formulação. A pergunta, envolvendo este par, tem que ser feita na negativa. Será Costa pior que Sócrates? O primeiro-ministro, esta semana, dissipou as dúvidas: é.
Na entrevista que deu à Visão e na reacção que teve para com Carlos Moedas, Costa foi absolutamente transparente. E, em dois dias, o primeiro-ministro que se tem por sol e sal, mostrou-se lunar e insalubre.
Dos "queques que guincham" à indignação com que lamentou que o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa não tenha ligado ao cidadão António Costa, temos todo um compêndio sobre o comportamento de um autocrata egocêntrico e birrento. António Costa desqualifica os adversários com a sobranceria de um soba, que só admite subserviência, e respeito pelas suas artes mágicas. Cá na aldeia, grosso modo, respeita-se e pasma-se.
Horas depois, o Primeiro-ministro que já foi Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ante umas cheias diluvianas que afectaram a cidade, tentou, como lhe é habitual, fugir entre os pingos da chuva: não se viu, nem se ouviu. Confrontado com isso, o que lhe ocorreu, foi lamentar a ausência de um telefonema de Moedas para saber de si. Por que é que isto é sintomático de autocracia? Porque é próprio dos autocratas não perceberem a diferença entre a sua condição de cidadão e o cargo que, transitoriamente, ocupam. Nem as suas obrigações de serviço público, muito para lá do exercício do poder e das honrarias de tal exercício.
Horas depois, desculpou-se com o sono. Não deixa de ser poético e trágico, como Portugal nestes anos, fazendo lembrar aquele poema de Pessoa: "Entre o sono e sonho,/ Entre mim e o que em mim/ É o quem eu me suponho/ Corre um rio sem fim."
Mas centremo-nos. Costa é pior que Sócrates? É pior. É pior, desde logo, no tom e na forma, como já vimos: na desqualificação de tudo à volta, talvez seja igual, mas no abastardamento da linguagem é pior. E é pior na (ausência) de visão, e na (falta) de coragem, como já o disse noutra altura: ao menos Sócrates tinha visão e tinha coragem.
E, por esta altura, o estimado leitor dirá que exagero e pergunta: mas, e na corrupção? É uma boa pergunta, a que eu começo por responder com outra pergunta.
Um político de um partido que teve como primeiro-ministro um homem acusado do esquema mais escandaloso de corrupção nas altas esferas do Estado, faria o quê assim que assumisse o poder? Note, o leitor, que não falo só de acusações de benefício económico, falo sobretudo de uma esquema de controlo de poderes e de eliminação de qualquer vislumbre de acção eficaz de checks and balances, num ataque nunca visto à ordem constitucional desde o 25 de Novembro. Faria o quê?, pergunto.
Um político que foi lugar-tenente desse mesmo primeiro-ministro, e nunca viu nada, numa cegueira que não foi só sua, quando o abandona ante os factos impossíveis de ignorar, faria o quê?
Respondo: um político sério, percebendo como a corrupção é, mais do que os populismos, a causa principal da degradação da democracia, atacaria o problema como prioridade estratégica, vital. Costa, por seu lado, limitou-se a prometer, em matéria de combate à corrupção, com discrição, o que não cumpriu com intenção.
Mas fez mais, com sinal menos. Costa afastou Joana Marques Vidal da Procuradoria-geral da República, talvez por incómodo ou pirraça. Costa afastou Vítor Caldeira do Tribunal de Contas, depois de este ter ousado alertar para o risco da generalização dos ajustes directos; prática que se tem vindo a mostrar o instrumento de ilegalidade preferido de vários socialistas, e àquilo a que Costa chamou esta semana de "casos da fábrica de soundbites da direita", e a que a Lei chama crime. Costa, que não gostava, por razões mesquinhas, de Carlos Costa, substitui-o na primeira oportunidade por Centeno, o seu Ministro das Finanças, sem período de nojo, numa nomeação de conveniência política. Costa preparou uma Lei de incompatibilidades mais papista do que o Papa, para a ver ignorada repetidamente por membros do seu Governo sem consequências à vista; sobre isto, soubemos esta semana também, que se tratam, também, na sua leitura, de mais "casos da fábrica de soundbites da direita".
Deliro? Não estou sozinho. Há duas semanas, António José Seguro (AJS) afirmou que «o “principio da separação de poderes foi beliscado” durante os “últimos meses” e não foi “nem uma, nem duas nem três situações”. O antigo secretário-geral do PS mostrou-se contra a inexistência de “consequências” depois das notícias perderem a força na comunicação social. E defendeu que isso gera um “encolher de ombros” por parte dos eleitores e uma “nebulosa” de que os políticos “se protegem uns aos outros”», lia-se em notícia, aqui no Expresso. Não concretizando, ainda assim AJS fez o papel do miúdo da história As vestes do Rei, e gritou: o Rei vai nu.
Sócrates, é bom que se diga, para que dúvidas não fiquem, não é reciclável. Mas Costa não é recomendável. Dizia que a corrupção, mais do que os populistas, ameaçam a ordem democrática. Ao que digo, muitos returquem que são todos iguais. Não são, mas quando estamos neste patamar, quando todos são iguais aos olhos do povo - do rule of the people - abrimos uma autoestrada para a destruição mais activa, e de difícil reparação, da separação de poderes - o rule of the law. E para a ascensão dos populistas.
Sócrates era um "animal feroz"? Costa é um político perigoso.
Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia.
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