Opinião

A lei da eutanásia no seu labirinto

A lei da eutanásia no seu labirinto

António Filipe

Membro do Comité Central do PCP e professor universitário

Quando se aprova uma lei não se deve pensar apenas em direitos individuais que se pretende tutelar, mas também em consequências sociais indesejáveis que podem decorrer da sua aprovação

Com todo o respeito que sempre manifestei pela opinião contrária, e que mantenho, não concordo com a aprovação de uma lei que legalize a eutanásia.

Dito isto, antes de tentar explicar onde residem as minhas reservas, creio ser útil afastar desde logo alguma tralha de preconceitos que só confundem a discussão.

Primeiro, esta não é uma questão que divida a esquerda da direita. Se assim fosse, estaríamos a arrumar o PCP, que discorda da lei, na direita, e a conferir foros de esquerda à Iniciativa Liberal que se conta entre os proponentes da lei aprovada na Assembleia da República. Há partidos e personalidades de esquerda e de direita em ambos os lados do debate. Esqueçamos, pois, para este efeito, essa clivagem.

Segundo, esta não é uma questão que divida os crentes dos não crentes. Conheço crentes que são favoráveis à legalização da eutanásia, e não crentes, como eu, que discordam dessa legalização.

Terceiro, não travo este debate no plano da constitucionalidade, porque não creio que o texto aprovado na Assembleia da República ponha em causa o direito à vida. O Tribunal Constitucional, se for chamado a decidir, decidirá, e a sua decisão a respeito do que foi aprovado terá de ser respeitada, mas a minha discordância não recai sobre qualquer juízo de inconstitucionalidade.

Quarto, não há qualquer semelhança entre o debate sobre a eutanásia e o debate sobre a IVG. O que estava em causa na questão da interrupção voluntária da gravidez era um grave flagelo social que era o aborto clandestino, que punha em causa a saúde e a vida de mulheres que não tinham condições para assumir a maternidade e não tinham condições para interromper a gravidez precocemente em condições de segurança. Do meu ponto de vista, o direito à vida que estava em causa e que importava defender era o das mulheres grávidas. Não se tratava, pelo menos para mim, de tutelar unicamente um direito individual das mulheres a rejeitar a gravidez. Havia valores sociais muito relevantes a tutelar no domínio da saúde pública, do direito das crianças a ser desejadas e a viver em condições socialmente dignificantes. E até no plano judiciário, não nos esqueçamos que enquanto a lei não foi revogada houve mulheres a serem julgadas e humilhadas nos tribunais por terem abortado. Qualquer paralelismo que se pretenda fazer entre a interrupção voluntária da gravidez e a antecipação voluntária da morte não faz qualquer sentido. Admito sem qualquer dúvida o propósito generoso de quem defenda ambas as coisas, mas não creio que sejam minimamente comparáveis, nem no plano individual e muito menos no plano social.

Quinto, quando falamos do direito individual que cada um pode ter quanto ao momento em que pretende terminar com a vida, não estamos a falar de um direito fundamental. Se houvesse um direito fundamental a pôr termo à vida não seriam admissíveis limitações legais a esse direito. Nesse caso, a lei limitar-se-ia ao seu reconhecimento e ninguém propõe isso. O texto da lei aprovado na Assembleia da República, com as limitações e condicionamentos que impõe à antecipação da morte, está a reconhecer que não se trata de tutelar um direito fundamental, mas a tentar regular uma situação limite entre a vida e a morte.

Expurgado que está o que não interessa neste debate, vejamos então o que me divide em relação aos muitos amigos com quem já discuti esta questão e que discordam da minha posição.

Começo por um ponto de partida em que é muito difícil estarmos em desacordo. Se me perguntam se eu estivesse numa situação de doença terminal ou considerada irreversível, com um sofrimento que considerasse insuportável, não quereria ter o direito de pedir ajuda para pôr termo à vida? Seria hipocrisia responder seguramente que não. Ninguém está em condições de afirmar com segurança o que faria numa situação dessas, mas nem é isso que está em causa. Acho respeitável que se defenda que qualquer pessoa, na situação descrita, possa ter o direito de pedir ajuda para pôr termo à vida.

Porém, quando se passa do reconhecimento individual à consagração legal surgem os problemas que não podem ser ignorados e que os proponentes da lei aprovada não ignoram, embora, a meu ver, desvalorizem.

O primeiro problema com que os proponentes se confrontam é o de evitar a chamada “rampa deslizante”. Ou seja: aberta na lei a possibilidade de antecipar a morte, esta pode ser usada muito para além dos termos limitados que a lei admite. Essa preocupação é mais que legítima, até porque se o número de países onde a eutanásia é legal é muito reduzido, há exemplos, como o da Suíça, onde a vulgarização do recurso à eutanásia, muito para além do que a legislação só por si permitiria supor, assume contornos que certamente a maioria dos defensores da legalização da eutanásia entre nós não gostaria de ver por cá.

Argumentam, ainda assim, os defensores da legalização que essa “rampa deslizante” não é uma inevitabilidade e que argumentar com essa possibilidade não passa de um processo de intenções sem fundamento, sendo que, para o evitar, a lei aprovada rodeou a regulamentação da eutanásia de um conjunto muito rigoroso de cautelas.

É um facto que, de acordo com o texto aprovado, as cautelas são muitas. Senão vejamos, passo a passo:

1.º passo: Em caso sofrimento de grande intensidade resultante de lesão definitiva de gravidade extrema ou de doença grave e incurável, o doente abre o processo através de pedido dirigido a um médico orientador, em documento escrito, datado e assinado pelo próprio, ou pela pessoa por si designada. Se for instaurado um processo judicial para aplicação do regime do maior acompanhado, o processo suspende-se.

2.º passo: É obrigatória uma consulta de psicologia clínica no prazo de dez dias, salvo se o doente a recusar.

3.º passo: No prazo de 20 dias o médico orientador emite um parecer. Se o parecer do médico não for favorável o processo é cancelado. Se não for, e se o doente mantiver a sua intenção de morte antecipada, deve a decisão ser registada por escrito, datada e assinada.

4.º passo: Após o parecer favorável do médico orientador, este procede à consulta de outro médico, especialista na patologia que afeta o doente, que dará um parecer no prazo de 15 dias, sobre a situação clínica e a natureza grave e incurável da doença ou a condição definitiva e de gravidade extrema da lesão, confirmando, ou não, se estão reunidas as condições legais para a morte antecipada. Se o parecer não for favorável, o processo é cancelado.

5.º passo: No caso de parecer favorável do médico especialista, o médico orientador informa o doente do conteúdo daquele parecer, após o que verifica novamente se o doente mantém e reitera a sua vontade, devendo a decisão do doente ser registada por escrito, datada e assinada pelo próprio ou pela pessoa por si designada.

6.º passo: Se o médico orientador e/ou o médico especialista tiverem dúvidas sobre a capacidade da pessoa para solicitar a morte medicamente assistida revelando uma vontade séria, livre e esclarecida ou se algum deles admitir que a pessoa seja portadora de perturbação psíquica ou condição médica que afete a sua capacidade de tomar decisões, é obrigatória a consulta de um psiquiatra. O parecer do psiquiatra é dado em 15 dias e se este considerar que as dúvidas se confirmam, o processo é cancelado.

7.º passo: Se o parecer do psiquiatra não for desfavorável, verifica-se novamente se o doente mantém e reitera a sua vontade, devendo a decisão deste ser registada em documento escrito, datado e assinado pelo próprio ou pela pessoa por si designada.

8.º passo: Sendo todos os pareceres favoráveis, o processo é enviado a uma Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida, solicitando parecer sobre o cumprimento dos requisitos e das fases anteriores do procedimento, que é elaborado no prazo de cinco dias úteis. Em caso de parecer desfavorável dessa Comissão, o processo é cancelado.

9.º passo: Em caso de parecer favorável, o médico orientador deve informar o doente do conteúdo daquele parecer, após o que verifica novamente se este mantém e reitera a sua vontade, devendo a sua decisão ser registada em documento escrito, datado e assinado pelo próprio ou pela pessoa por si designada.

10.º passo: O médico orientador, de acordo com a vontade do doente, combina o dia, hora, local e método a utilizar para prática da morte medicamente assistida. A decisão do doente sobre a autoadministração de fármacos letais pelo próprio ou a administração pelo médico ou profissional de saúde deve ser consignada por escrito, datada e assinada pelo doente, ou pela pessoa por si designada.

11.º passo: Imediatamente antes de se iniciar a administração ou autoadministração dos fármacos letais, o médico orientador deve confirmar se o doente mantém a vontade de requerer a morte medicamente assistida, na presença de testemunhas.

O que resulta desta minuciosa regulação é a preocupação justa dos autores do texto legal de que o processo de antecipação da morte assistida não seja banalizado nem efetuado de ânimo leve, mas torna claro que se o doente tem o poder exclusivo de pedir a abertura do processo e de lhe pôr termo caso mude de ideias, não dispõe do poder de impor a sua vontade contra o parecer de um de três médicos intervenientes, ou contra o parecer de uma comissão administrativa criada por lei. Assim, quer se queira quer não, a morte assistida não é uma decisão decorrente da autonomia da vontade individual de exercer um direito inalienável. É um ato administrativo regulado pelo Estado, mediante um procedimento administrativo complexo em cuja decisão intervêm, para além do interessado, vários profissionais de saúde.

Se o que se pretende é consagrar um direito que não se deve negar a quem queira pôr termo à vida por estar numa situação de sofrimento que considera insuportável, onde fica a vontade do próprio se tal direito for negado pela Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida?

Dirão os autores da lei que, por este raciocínio, serão “presos por ter cão e presos por não ter”. Se a lei não fosse tão rigorosa, seriam acusados de querer banalizar o recurso à eutanásia; sendo a lei rigorosa, são acusados de prever um mecanismo excessivamente complexo e onde a vontade do doente pode, afinal, ser irrelevante.

Tenho alguma solução para resolver esta contradição? Não tenho. E por isso mesmo, considero que não é sensato legislar sobre esta matéria.

Preconizo assim que se deva ficar insensível perante o sofrimento? Pelo contrário. O que considero é que todo o esforço do Estado deve ser feito para evitar o sofrimento, garantindo o apoio médico e psicológico a quem dele necessite e, se necessário em casos limite, através de uma rede condigna de cuidados paliativos. Não existindo essa rede em condições satisfatórias, entendo que não é digno que o Estado crie condições para morrer “dignamente” a quem não garante condições para viver condignamente. Eu sei que a maioria dos defensores da legalização da eutanásia não pretende que esta seja uma alternativa às carências do Serviço Nacional de Saúde e sei que defendem, tanto como eu, que exista uma rede adequada de cuidados paliativos. Só que, independentemente dessas vontades, havendo pessoas em grande sofrimento, não havendo a resposta adequada dos serviços de saúde, não havendo cuidados paliativos para quem deles necessite, e havendo a possibilidade de pôr termo à vida, as coisas são como são.

Acho com isto que se deve pretender prolongar artificialmente e de forma desproporcionada a vida de quem sofra de doença incurável, através da chamada obstinação terapêutica? Não acho. Para além de que isso constitui uma má prática médica, segundo ouvi a muitos profissionais, existe já hoje a possibilidade de recusar certos tratamentos através de diretivas antecipadas de vontade, cuja existência deveria ser mais publicitada, e que permitem, de forma livre e esclarecida, identificar os tipos de tratamentos ou cuidados de saúde que alguém recusa receber, mesmo em caso de se encontrar incapaz de expressar a sua vontade.

Reconheço que o texto aprovado não dá guarida a uma certa ideologia da eutanásia, muito divulgada em certos meios, onde se considera que o Estado deve tutelar o direito de cada um a solicitar apoio para pôr termo à vida por opção existencial, por cansaço de viver ou por considerar que não merece a pena continuar a viver. Reconheço que a lei aprovada não vai por aí, pelo que, receio que alguns defensores da eutanásia considerem que se esta lei entrar em vigor fique aquém das suas expetativas e que, ou servirá de muito pouco ou terá de ser contornada. Espero, se a lei entrar em vigor, que sirva de pouco por se circunscrever a um número muito limitado de situações e, sobretudo, que não seja contornada de modo a abranger situações que não pretende abranger.

Em todo o caso, insisto no meu ponto: O que estamos a discutir com a legalização da eutanásia não é vontade de alguém pôr termo à vida, que é, em si mesmo, digna do maior respeito. O que estamos a discutir é uma opção legislativa. É o que dispõe o legislador da República perante a vida e a morte dos seus cidadãos. Como já foi afirmado no debate parlamentar, “a autonomia individual é algo que deve ser respeitado, mas uma sociedade organizada não é uma mera soma de autonomias individuais e não pode o legislador assumir uma opção legislativa sobre a vida e a morte das pessoas sem ter em conta as circunstâncias e as consequências sociais dessa opção”. O dever do Estado é apostar decisivamente no reforço do Serviço Nacional de Saúde, investir no progresso da medicina e tudo fazer para que todos cidadãos possam viver com dignidade e não se vejam na situação de ter de optar entre manter o sofrimento ou antecipar a morte. Consagrar na lei o direito individual a pôr termo à vida, ainda que em determinadas condições, pode ser um passo em falso capaz de produzir consequências sociais indesejadas e indesejáveis.

A pretensão deste texto não é retomar debates parlamentares em que participei com honra, em nome do PCP, exprimindo uma posição com que me identifico convictamente, nem é a de convencer ninguém. Se, ponderadas as minhas razões, ainda assim discordarem delas, amigos como dantes. Se a lei entrar em vigor e os meus receios não se verificarem, ficarei muito feliz por não ter tido razão.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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