Opinião

Equívocos acerca do referendo

Equívocos acerca do referendo

José Matos Correia

Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD

O voto dos cidadãos serve para eleger os seus representantes, mas já não é útil ou adequado nas situações em que os mesmos representantes considerem que o resultado pode ser, porventura, inconveniente?

No contexto do debate parlamentar sobre a eutanásia, o PSD avançou com a proposta de realização de um referendo. E isso não deveria surpreender ninguém.

Na verdade, o PSD tem sido, consistentemente, a favor da realização de consultas populares sobre questões cuja especial relevância justifique – ou exija até, no seu entendimento – a pronúncia direta do titular da soberania, isto é, do povo. Recorde-se, a esse propósito, o caso da interrupção voluntária da gravidez ou da regionalização.

Para os mais esquecidos, vale a pena lembrar, aliás, que, em 2020, o seu grupo parlamentar já havia votado esmagadoramente a favor de um referendo sobre a eutanásia, então proposto por mais de noventa mil cidadãos.

A iniciativa foi confrontada, de imediato, com várias críticas. Sendo que, a meu ver, nenhuma tem fundamento.

A primeira delas prende-se com a suposta similitude entre a pergunta formulada pelo PSD e uma outra, já objecto de reprovação na actual sessão legislativa, o que violaria o disposto no n.º 4 do artigo 167.º da Constituição.

O Presidente da Assembleia da República entendeu não admitir a proposta. Erradamente. Porque, como muito bem sublinhou o António Filipe, no artigo aqui publicado na passada segunda-feira, embora o processo legislativo em cujo âmbito as iniciativas foram apresentadas seja o mesmo, tudo o resto é diferente: o teor das perguntas, o sentido da resposta que delas poderia decorrer e, até, o universo eleitoral proposto. E, já agora, convém lembrar que o António Filipe é uma das nossas principais referências na matéria, uma vez que a sua tese de doutoramento é, precisamente, sobre o referendo.

A segunda apreciação negativa foi dirigida ao facto de a apresentação da proposta ter ocorrido aquando da votação na especialidade dos projectos de lei, algo que, para uns, foi visto como manobra demagógica e, para outros, constituiu um mero expediente dilatório.

Se dependesse de mim, o anúncio teria sido feito mais cedo. Mas compreendo, também, o argumento de que só se avançou quando se ficou a conhecer o texto final, resultante da fusão das iniciativas de PS, BE, PAN e Iniciativa Liberal.

E não é despiciendo, a este propósito, recordar aquilo que a lei prevê, mais especificamente o n.º 1 do artigo 4.º do regime jurídico do referendo, em cujos termos este pode incidir sobre questões suscitadas por atos legislativos em processo de apreciação, mas ainda não definitivamente aprovados.

Ora, se o processo legislativo estava em curso, como questionar a legitimidade, tanto jurídica quanto política, do tempo escolhido?

A terceira censura salta do plano formal para o domínio material: os direitos fundamentais não se referendam! Mas porquê?!

Comecemos pelo princípio. As regras do jogo democrático estão estabelecidas na Constituição. A nossa, ao consagrar o referendo, determina ao mesmo tempo, no n.º 4 do artigo 115.º, os temas dele excluídos. E quais são? As alterações à Constituição, as questões e os actos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro, as matérias previstas no artigo 161.º (com exceção da generalidade das convenções internacionais referidas na sua alínea i) e as atinentes ao domínio da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (menos as relacionadas com as bases do sistema de ensino).

Sucede que as matérias atinentes aos direitos, liberdades e garantias, estão previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 165.º. Quer isto dizer que, por expressa vontade do legislador constituinte, nada obsta a que os referendos incidam sobre esses direitos. Com que autoridade se pode dizer, assim, que os direitos fundamentais não se referendam?! Com que autoridade se pretende, dessa forma, levar a cabo uma espécie de revisão constitucional sub-reptícia, limitando, politicamente, a possibilidade de aplicação das normas da lei fundamental?!

E, já agora, que lições temos nós a dar a outros países cuja experiência democrática é muito mais antiga do que a nossa, com o é o caso da Suíça, em que consultas populares sobre assuntos envolvendo direitos fundamentais são frequentes?

Guardei para o fim o argumento que maior perplexidade me causa – não é conveniente realizar referendos sobre temas que, pela sua sensibilidade, se prestam a uma (supostamente) fácil instrumentalização demagógica.

No limite, tal raciocínio interditaria, por completo, a realização de referendos sobre toda e qualquer questão importante, porque sempre se correria o risco do desvio da sua verdadeira motivação para outros fins de natureza política conjuntural. Assim, começaríamos por não admitir referendar direitos fundamentais, faríamos depois o mesmo relativamente às questões europeias e por aí adiante. Pergunto: sobraria o quê?

Portugal é, e muito bem, uma democracia representativa. Mas isso em nada deve pôr em causa a importância de, em situações especiais e em temas de particular relevo, reconhecer a vantagem de devolver a palavra aos cidadãos.

Ou o voto dos cidadãos serve para eleger os seus representantes, mas já não é útil ou adequado nas situações em que os mesmos representantes considerem que o resultado pode ser, porventura, inconveniente?

Nota derradeira, para que se não diga que tentei, entre os pingos da chuva, escapar ao tema da eutanásia. Em 2018, quando era Deputado, votei contra a sua legalização. Hoje, voltaria, de forma convicta, a agir do mesmo modo. Porque, em vez do apregoado avanço, estamos, antes, perante um grave retrocesso civilizacional. E porque, numa questão tão central, se abre um caminho de consequências imprevisíveis. Como o evidencia, de resto, as infelizes práticas que estamos já a assistir nalguns países.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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