Opinião

Politicamente patético, juridicamente inconsequente

Politicamente patético, juridicamente inconsequente

António Filipe

Membro do Comité Central do PCP e professor universitário

Apresentar uma proposta de referendo na véspera da votação final global de um ato legislativo é politicamente patético e juridicamente inconsequente. Não admitir a iniciativa é juridicamente controverso e politicamente desnecessário

Como início de conversa, declaro que votaria contra a realização de um referendo sobre a legalização da eutanásia como proposto na semana passada pelo PSD tal como teria votado antes quando foi proposto pelo Chega. Porém, o meu ponto hoje não é esse, nem sequer a questão de fundo, muito mais relevante, que é a opção legislativa pela legalização da eutanásia. Referir-me-ei a isso em breve. O que hoje me proponho é analisar brevemente de um ponto de vista jurídico-constitucional as questões da apresentação pelo PSD de uma proposta de referendo sobre a eutanásia e da recusa da sua admissão pelo Presidente da Assembleia da República.

Apresentar um projeto de resolução à Assembleia da República para que proponha um referendo sobre um processo legislativo em curso na véspera da votação final global é politicamente patético na medida em que a apresentação desse projeto não implica a suspensão do processo legislativo. O PSD podia ter proposto a realização desse referendo desde o início dos processos legislativos que já tiveram lugar, desde há vários anos e em diversas legislaturas. Poderia ter feito idêntica proposta quando há poucos meses foi proposto um referendo sobre a mesma matéria. Poderia ter apresentado a proposta durante o processo legislativo em curso que decorre há vários meses. Não o fez. Há duas semanas, a votação na especialidade estava agendada na Comissão competente e só não ocorreu porque o PS aceitou um pedido de adiamento feito pelo Chega. Se assim não tivesse sido, a votação teria ocorrido sem oposição do PSD. Subitamente na passada semana, na véspera da votação, surge a proposta de referendo do PSD com o intuito de adiar a votação final global.

Nos termos constitucionais, a apresentação de um projeto de resolução propondo que a Assembleia da República proponha ao Presidente da República a realização de um referendo não tem como efeito a suspensão do processo legislativo. Se assim fosse, seria muito fácil a qualquer grupo parlamentar suspender processos legislativos. Bastaria apresentar um projeto para a realização de um referendo antes da votação final global. O que determina a suspensão do processo legislativo, de acordo com o n.º 2 do artigo 4.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo é a apresentação de uma proposta de referendo pela Assembleia da República ao Presidente da República. Ou seja, apresentado à Assembleia da República um projeto de resolução para a realização de um referendo sobre um processo legislativo em curso, o que suspende esse processo é a sua aprovação e não a sua mera apresentação.

Não havia assim nenhuma razão para que o processo legislativo sobre a legalização da eutanásia não seguisse os seus trâmites como estava previsto desde há muito, anulando na prática o efeito do projeto apresentado pelo PSD.

Com efeito, nos termos constitucionais (artigo 115.º, n.º 3), um referendo só pode ter lugar sobre questões que “devam ser decididas” pela Assembleia da República, o que exclui o referendo revogatório de decisões já tomadas. Logo, realizada a votação final global (o que ocorreu na passada sexta-feira), qualquer decisão de propor um referendo sobre essa matéria, seria obviamente inconstitucional e isso não deixaria de ser tido em conta no parecer que a Comissão de Assuntos Constitucionais teria de elaborar sobre a iniciativa em causa.

Concluo, pois, que a proposta do PSD foi politicamente patética e juridicamente inconsequente.

Já a decisão do Presidente da Assembleia da República (PAR) me parece politicamente desnecessária pelas razões expostas. Na prática, a iniciativa, nascida na quarta-feira, teria morrido na sexta-feira com a votação final global feita em plenário.

Juridicamente, o Presidente da Assembleia da República invoca argumentos válidos, em tese, para a sua decisão, mas que não dispensam uma análise concreta do teor da iniciativa em causa. Senão vejamos: É um facto que, nos termos do artigo 167.º, n.º 4 da Constituição, “os projetos de referendo definitivamente rejeitados não podem ser renovados na mesma sessão legislativa”. Bem se compreende a razão. Um partido via a sua iniciativa ser rejeitada e reapresentava-a no dia seguinte, e assim sucessivamente.

Porém, a primeira questão é a de saber se a proibição constitucional se refere ao mesmo autor ou se proíbe igualmente outros partidos de apresentar propostas sobre a mesma matéria. A esse respeito o PAR invoca doutrina autorizada no sentido de que “é indiferente a identidade subjetiva das iniciativas” porque o órgão a que se dirigem é o mesmo. Em tese, podemos admitir que sim. Se um partido retomar iniciativa idêntica a uma outra já rejeitada que tenha sido apresentada por outro partido, esta pode não ser admitida na medida em que se demonstre que o conteúdo da iniciativa é o mesmo, só diferindo a autoria.

A questão mais complexa é a de saber como proceder no caso em que a iniciativa de propor um referendo incida sobre uma matéria relativamente à qual já tenha sido rejeitada na mesma sessão legislativa uma proposta de referendo apresentada por outro partido mas que contenha uma pergunta substancialmente diferente ou que até seja formulada de um sentido diametralmente oposto.

A este respeito, o acórdão do TC citado pelo PAR refere que “as diferenças de formulação das perguntas são insuficientes para permitir afirmar que não se pretende que o eleitorado se pronuncie sobre a mesma questão” e são citados autores que referem justamente que o que conta é “a identidade substancial” sendo irrelevantes “simples diferenças de pormenor”.

Não discordando em tese dessa doutrina, o que me parece relevante é que essas considerações não dispensam uma análise casuística das várias iniciativas em presença para aferir, em concreto, se estamos perante a repetição de iniciativa idêntica a uma outra, já rejeitada, ou se estamos perante iniciativa diversa, embora incida sobre matéria coincidente.

É certo que não relevam diferenças de pormenor nem artifícios formais destinados a contornar a proibição constitucional, mas é necessário admitir que a Assembleia da República entenda dever rejeitar uma iniciativa de referendo por considerar que a pergunta proposta é absurda ou inconstitucional ou que as circunstâncias temporais propostas são inconvenientes ou mesmo inconstitucionais e pretender, ainda assim, aprovar proposta de referendo muito diferente, ainda que sobre a mesma matéria, na mesma sessão legislativa. A não ser assim, seria muito fácil inviabilizar um referendo que não se quer, apresentado uma proposta que a maioria da Assembleia da República considerasse inaceitável e evitando com isso que outros o pudessem propor em termos adequados.

Confrontando as iniciativas de referendo em causa, verifica-se que o processo legislativo sobre que incidem é o mesmo, mas que as perguntas são muito diferentes, o sentido da resposta do eleitorado seria diametralmente oposto tendo em conta a formulação concreta das perguntas, e nem o universo eleitoral proposto é coincidente.

Em conclusão, se tivesse de decidir sobre o projeto de referendo apresentado pelo PSD, ainda que reconhecesse as dúvidas que o caso suscita, não inviabilizaria a sua admissibilidade mas reconheceria a sua inconstitucionalidade superveniente logo que tivesse lugar a votação final global do processo legislativo e, se fosse caso disso, votaria contra a proposta de realização do referendo.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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