Opinião

Whatever é a palavra mais portuguesa de Portugal

Há uma escatologia filosófica no uso da palavra 'whatever' em Portugal. Um devir que não é dever. É, antes, um "vamos ver". Uma atitude de vida que, normalmente acompanhada de um encolher de ombros ou de um revirar de olhos, nos diz que o futuro é "o que for"; um "venha o que vier". Mas não o "venha o que vier, que nós cá estamos para o enfrentar", antes um “venha o que vier, que depois logo se vê”

Não há palavra mais portuguesa, neste primeiro quartel do séc. XXI, do que a palavra whatever. Quando me apercebi disso, estava eu nas celebrações da Restauração da Independência, foi como se tivesse sido atropelado por um camião TIR, ou por uma carroça, ou por um esquadrão de cavalaria à desfilada, whatever. Depois recompus-me e tive esta epifania: whatever é, por supuesto, a palavra mais portuguesa de Portugal.

Duvidam? Já o ouvi em todo o lado: em transportes públicos e em monólogos pudicos. Gente de todas as idades e condições sociais, de repente, passou a usar nas suas frases, sobre os mais diversos temas, esta palavrinha mágica. "Ele insinuou que eu precisava de maquilhagem. Whatever". "Tens que me aumentar a mesada, para eu comprar o que eu quiser: livros, tostas mistas, whatever". "Ainda não me enviaste o documento. Whatever, eu faço…" "E eu, tipo: whatever!"

É um país inteiro assim. Whatever rima com modorra. Não rima? O que quer que seja, porra!

Um português vai ao SNS, onde não tem médico de família, espera 6 horas, o médico despacha-o em 5 minutos, a urgência obstétrica está fechada, os doentes acamados estão no corredor, mas, whatever… Já só lá volta daqui a 6 meses. Outro português, a receber subsídio de desemprego, é contactado pelo Centro de Emprego: têm um emprego para ele, pagam-lhe o mesmo que recebe de subsídio, tem que trabalhar 8 horas por dia e ainda tem que ir para Lisboa e almoçar lá todos os dias. Faz-se de parvo, para ver se não o contratam. Whatever, vamos ver se se safa. Portugal foi ultrapassado pela Roménia, cada vez há mais pobres e mais impostos, e os serviços públicos estão em colapso? Whatever, esqueçamos isso que agora vai dar o jogo da selecção. A filha chega a casa e diz que uns miúdos da Juventude Socialista foram lá à escola para apoiar a sua lista à Associação de Estudantes. O pai returque: esses gajos só querem é tacho, mas olha, whatever, pode ser que te safes também, põe os olhos no Tiago.

Há dias dei conta que a União Europeia está a discutir a possibilidade de institucionalizar um dia europeu do Whatever It Takes. A fonte de inspiração é Mario Draghi, que usou essa expressão para afirmar a sua vontade indomável de salvar o Euro. A proposta parece que é de um português a viver na Suíça, e o mote é fazer o que for preciso para salvar os valores europeus. E eis o paradoxo insanável: quais valores europeus? Liberdade, democracia e progresso? Qual quê. Os valores portugueses são os valores europeus, sim, mas aqueles que se contam em euros: os da bazuca, do PRR, do PT2020, do PT2030, whatever. E se acaso não os executarmos, whatever, logo se vê.

Whatever, que quer dizer, entre os povos de língua inglesa, "o que quer que seja", tem, por lá, um uso indiferente e banal. Cá, tem um uso diferente e filosofal. Há uma escatologia filosófica no uso da palavra em Portugal. Um devir que não é dever. É, antes, um "vamos ver". Uma atitude de vida que, normalmente acompanhada de um encolher de ombros ou de um revirar de olhos, nos diz que o futuro é "o que for"; um "venha o que vier". Mas não o "venha o que vier, que nós cá estamos para o enfrentar", antes um "venha o que vier, que depois logo se vê".

Whatever é o fado português actualizado: sem esperança nenhuma, mas sem desesperança alguma. Ou talvez tenha percebido mal, talvez esteja enganado, exacerbando a pobreza de agora e ignorando a riqueza de outrora. Talvez se trate, afinal, de uma marca portuguesa, também filosófica, daquelas que só países com 900 anos podem dizer com a displicência dos povos quase milenares. What, ever? O que é sempre? E talvez por isso, ante isto, os portugueses riem-se do presente. Porque rir é o melhor remédio. Ou whatever.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia.

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