Opinião

O PS, o Dr. Jekyll e o Mr. Hyde

O PS, o Dr. Jekyll e o Mr. Hyde

António Filipe

Membro do Comité Central do PCP e professor universitário

Tanto no caso dos “vistos gold” como na “lei dos sefarditas”, há um PS que acha que as leis devem ser mudadas e há outro PS que vota contra qualquer mudança nas leis, e como é este que conta, fica tudo na mesma

É célebre a história de Robert Louis Stevenson conhecida entre nós como “o médico e o monstro”. Um médico gentil, bem formado e encantador, Dr. Jekyll, tem dupla personalidade, e de um momento para o outro transforma-se em Mr. Hyde, uma criatura horrenda, capaz das mais sórdidas malfeitorias.

Em 29 de julho de 2013 foi publicada uma lei da Assembleia da República (Lei Orgânica n.º 1/2013) que alterou a lei da nacionalidade com o objetivo de permitir a aquisição da nacionalidade portuguesa aos descendentes de judeus sefarditas expulsos de Portugal em 1496, desde que demonstrassem tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, com base em requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal, designadamente apelidos, idioma familiar, descendência direta ou colateral. Os requisitos de residência em Portugal e de conhecimento da língua portuguesa foram dispensados.

Em 2019, aquando de um processo de alteração da lei da nacionalidade, foi publicamente denunciado o facto de haver agências de viagens em Telavive a oferecer os seus préstimos para a aquisição fácil da nacionalidade portuguesa, de haver empresas a mapear árvores genealógicas para oferecer a nacionalidade portuguesa a quem nem imaginava que a poderia obter, e de haver suspeitas do facilitismo com que a comunidade israelita do Porto certificava a descendência de judeus sefarditas para os efeitos previstos na lei. Daí que tenha sido o PS (qual Dr. Jekyll) a propor uma alteração na lei para pôr termo a esses abusos.

Em audições realizadas, os próprios Ministros dos Negócios Estrangeiros (Augusto Santos Silva) e da Justiça (Francisca Van Dunem) referiram o facto de haver um manifesto abuso do regime legal estabelecido em 2013 que se estava a traduzir inclusivamente num fator de grave desprestígio para Portugal, designadamente junto dos demais países da União Europeia. O escândalo já não era apenas nacional, era já internacional.

A proposta apresentada pelo PS (qual Dr. Jekyll) nem sequer determinava a cessação de vigência do regime aprovado em 2013. Limitava-se a mitigar a possibilidade da sua utilização abusiva, fazendo depender a sua aplicação da existência de uma “efetiva ligação à comunidade nacional”, mas essa simples possibilidade suscitou a oposição expressa dos grupos parlamentares do BE, do CDS-PP e do PAN e a contestação vinda de setores ligados às comunidades israelitas portuguesas e de personalidades ligadas ao Partido Socialista, que fez com que o PS (qual Mr. Hyde) tenha retirado formalmente a sua proposta.

Entretanto, ficámos a saber que o célebre milionário russo e israelita, Roman Abramovich, tinha adquirido a nacionalidade portuguesa ao abrigo da lei sem ter qualquer ligação que se conheça à comunidade nacional, o que fez desencadear a curiosidade pública e mediática, até aí praticamente inexistente, sobre os abusos que estariam a ser cometidos ao abrigo das possibilidades legais de concessão da nacionalidade portuguesa a reais ou supostos descendentes de judeus sefarditas expulsos de Portugal. Depois ficámos a saber que responsáveis da comunidade israelita do Porto foram constituídos arguidos por suspeitas de corrupção na certificação de descendência sefardita para efeitos de obtenção da nacionalidade portuguesa. Mais recentemente ficámos a saber que integram a seleção israelita de futebol, doze jogadores com nacionalidade portuguesa, obtida ao abrigo da mesma lei.

Todavia, quando foi votado em julho deste ano um projeto de lei do PCP para revogar a disposição legal que permite este escândalo, só o PCP, o BE e 6 deputados do PS (em 120) o votaram favoravelmente. O PS (qual Mr. Hyde), votou contra.

Algo de semelhante se passa com os conhecidos “vistos gold”. Trata-se de um dispositivo legal introduzido na “lei de estrangeiros” que permite atribuir autorização de residência a alguém que não resida nem tenha qualquer ligação a Portugal desde que mande para cá muito dinheiro, isto é, que compre a autorização de residência, a qual permite, após cindo anos, obter a nacionalidade. Assim, pode ser através da compra de um imóvel de valor superior a 400.000 euros ou da reabilitação de um imóvel num montante superior a 280.000, pode ser através de um depósito de 1,5 milhões de euros num banco sedeado em Portugal, pode ser através de um investimento em investigação científica superior a 500.000 euros, de subscrição de fundos de investimento ou de participação em sociedades com um valor superior a 500.000 euros, ou com a criação de 10 postos de trabalho.

Escusado será dizer que a quase totalidade dos vistos obtidos se deu através da aquisição de imobiliário, não passando as outras hipóteses de música celestial. Assim como escusado será dizer que os vistos gold são um veículo privilegiado para o branqueamento de capitais, para além da imoralidade que reside no facto destas facilidades contrastarem com as dificuldades na obtenção de autorizações de residência por quem pretenda trabalhar ou estudar em Portugal sem dispor de meios de fortuna.

Perante o que já é, há muito, uma evidência, António Costa (qual Dr. Jekyll), ao participar na Web Summit no passado mês de novembro, afirmou que os vistos gold já terão cumprido a sua missão e que já não se justifica a sua manutenção.

Todavia, quando no recente debate sobre o Orçamento do Estado para 2023 o PS foi confrontado com propostas do PCP, do BE e do PAN para acabar com os vistos gold, o PS (qual Mr. Hyde) votou contra, acompanhado pelo PSD e pelo Chega.

E assim fica tudo na mesma, porque há PS e PS, e como diz o povo, o que tem de ser tem muita força.

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