Opinião

As Causas. Excursionistas e ambientalistas

Um comentador não é um Presidente da República, um dirigente partidário não é um Primeiro Ministro. Os cargos obrigam a prudência e deviam afastar a demagogia barata… que pode sair cara, pelo menos quanto à credibilidade

Como talvez já tenham reparado, uso muitas vezes o que se poderia chamar (erradamente, em minha opinião) “faits divers” para retirar lições e ajudar à reflexão de quem me lê.

Também costumo tentar pegar nos assuntos de um modo diverso do habitual, com a mesma finalidade.

É o que farei hoje com dois eventos no Médio Oriente: a COP 27 no Egipto e o Campeonato de Futebol no Catar.

OS INDIGNADOS EXCURSIONISTAS

O Mundial de Futebol do Catar entrou no centro do debate político por razões dificilmente explicáveis, mas com consequências relevantes.

Antes do mais, alguns factos:

  1. Tudo indica que a escolha da localização em 2010 (em que também se decidiu a Rússia para 2018) não foi isenta de compra de votos, restando saber se no passado isso não ocorrera já;
  2. O Catar não respeita liberdades que são essenciais, pelos menos nos EUA, Europa Ocidental, Canadá, Austrália, e outros países em vários continentes, como seja a criminalização da homossexualidade, que é dominante em países muçulmanos, mas não piorou esses indicadores desde 2010;
  3. Há fortes indícios de que muitos trabalhadores migrantes morreram, devido à pressão para construção dos Estádios e outras infraestruturas, falta de segurança no trabalho e um regime laboral que é sustentado em regras como a retenção de passaportes e outras que seriam ilegais na EU;
  4. Por isso, em junho de 2014, o diretor-geral da OIT apresentou uma denúncia contra o governo do Catar pela violação da Convenção nº 29 sobre o Trabalho Forçado e da Convenção nº 81 sobre a Inspeção do Trabalho. Segundo a denúncia apresentada, o trabalho forçado no Catar afetava cerca de 1,5 milhão de trabalhadores migrantes;
  5. No entanto, em finais de 2017 o Catar financiou a OIT com 25 milhões de USD (o que não é ilegal);
  6. Por coincidência ou não, o Conselho de Administração da OIT – formado por 28 representantes de Estados, 14 de empregados e 14 de empregadores - decidiu então retirar sua denúncia contra o emirado, “em função das últimas mudanças significativas feitas pelo governo do Catar na sua legislação laboral”. Na mesma época, a OIT aprovou o lançamento de “um vasto programa de cooperação técnica no Catar com a duração de três anos”;
  7. Em 2020 o Catar implementou o salário mínimo (foi o primeiro país do Golfo a fazê-lo) e, com alimentação e habitação (cuja qualidade é seguramente muito discutível), isso corresponde a cerca de 510 euros mensais, e avançou com outras reformas positivas;
  8. Nestas condições não faltam imigrantes que vêm de países onde os seus rendimentos seriam muito inferiores.

Agora outros factos:

  1. Ao longo de décadas, este torneio foi realizado em países com sistemas político-sociais muito criticáveis, desde a Itália fascista (1934), à Rússia de Putin (2018), passando pela Argentina em ditadura militar (1978);
  2. Na pequena pesquisa que fiz, não encontrei críticas de partidos políticos portugueses, em 2010 e 2011, nem à escolha do Catar nem à da Rússia;
  3. Seja como for, parece que Portugal é um dos países do Mundo em que mais dirigentes políticos de alto nível vão ao Catar (os três principais na hierarquia do Poder), mas também é um dos países do Mundo que agora mais critica a escolha e o Catar;
  4. O Presidente da República afirmou, à saída do jogo de futebol com a Nigéria em Alvalade, que “o Catar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal… mas enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa”;
  5. As reações revelaram que esta foi uma das suas gaffes, infelizmente cada vez mais habituais, e por causa disso entrou em pânico e reagiu com críticas públicas ao Catar, ultrapassando e muito os limites da diplomacia;
  6. No entanto – e como o Primeiro-Ministro e o Presidente da Assembleia da República – decidiu manter a viagem, oficialmente para apoiar a equipa, mas evidentemente para colher dividendos internos;
  7. E no Catar fez uma conferência em que disse coisas corretas, banais e anódinas em abstrato, mas que em concreto foram uma crítica ao país que o acolhia;
  8. O Embaixador de Portugal foi chamado pelo Governo do Catar para ouvir do Vice-Primeiro Ministro que as declarações do Presidente e outras do Primeiro-Ministro “não são aceitáveis e que só a histórica amizade que une os dois países vai evitar que sejam tomadas medidas drásticas.

Tudo isto é uma desnecessária trapalhada, em que políticos experientes se envolveram por não serem capazes de estar calados (Costa não quis deixar passar a oportunidade de criticar indiretamente a gaffe presidencial) e por pensarem que se pode ter um discurso para efeitos internos e uma prática internacional que não é coerente e, além disso, criticando um país cujos investimentos têm sido desejados ao longo dos anos.

Tudo isto faz lembrar demasiado o que fizeram com Angola, para se não perceber que cada vez se nota mais a falta de sentido de Estado, de gestão dos silêncios, de coerência.

Um comentador não é um Presidente da República, um dirigente partidário não é um Primeiro Ministro. Os cargos obrigam a prudência e deviam afastar a demagogia barata… que pode sair cara, pelo menos quanto à credibilidade.

Seria preferível o silêncio acompanhado da ausência. Sobretudo quando a União Europeia anda há meses a namorar o Catar para aumentar a produção e nos vender mais gás natural.

E não faria mal alguma coerência, que não se vê quando países como Cuba e Venezuela (para não ir mais longe) não recebem nem nunca receberam uma crítica equivalente dos nossos indignados excursionistas, mas apenas os rasgados sorrisos que revelam estas fotos que surgem nos vossos ecrãs:

E Miguel Pinheiro lembrou no Observador (a internet é lixada…) que em 2017 António Costa foi ao Catar seduzir para investimentos e para vistos gold e em 2021 Marcelo estava a aplaudir a adesão do Catar à CPLP por “partilhar os [seus] princípios orientadores”, “designadamente no que se refere à promoção das práticas democráticas, à boa governação e ao respeito dos direitos humanos”.

Quando na Política se perde a vergonha e a credibilidade costuma ficar pouca coisa …

No meio disto as declarações de Augusto Santos Silva foram de Homem de Estado e uma bofetada de luva branca aos outros dois.

OS INCONSCIENTES AMBIENTALISTAS

E continuemos com a hipocrisia, declinada agora na COP 27 que terminou há dias no Egito (onde o governo português esteve e não achou necessário fazer o que fez ao Catar…).

A Conferência foi um rotundo fracasso, mas um marciano que só lesse as declarações oficiais dos países acharia o contrário.

Alguns factos:

  1. Teve de se prolongar por dois dias a conferência para se arrancar a ferros um comunicado;
  2. Sobre as metas de Paris quanto ao aquecimento global nada mais do que balões de ar quente e nem se tentou substituir a meta dos 1,5 graus acima dos valores prévios à Revolução Industrial por outra realista;
  3. Foi anunciado como uma grande vitória que (alguns dos) países mais ricos aceitassem o princípio de pagar “perdas e danos” sofridos pelos mais pobres devido à subida dos oceanos e aos desastres naturais causados pelo aquecimento global;
  4. Antes da COP 27 apenas dois países (Dinamarca com 13 milhões de USD e Escócia com 2 milhões de Libras esterlinas) e agora outros europeus assumiram pagar, com valor de cerca de 260 milhões de USD, mas há especialistas que falam em necessidades de 580 mil milhões de dólares/ano.

Ou seja, a sensação que dá é que na COP ou está tudo doido ou realmente não acreditam no efeito devastador do carbono e metano sobre a atmosfera, o que pode acabar por destruir o frágil equilíbrio que permite a vida neste excêntrico planeta do sistema solar.

E a decisão de criar um fundo sob os auspícios das Nações Unidas, a regular daqui a um ano, deixa em aberto não apenas o seu valor, mas sobretudo quem deve receber e quem tem de pagar. Veja-se o gráfico do Economist, onde se calcula o total de emissões de CO2 desde 1850:

O gráfico demonstra que entre os 11 principais emissores em 170 anos só estão dois países da Europa Ocidental (e até agora só a UE aceitou pagar), e além dos EUA, Canadá e Japão os outros 6 recusam-se a pagar e até acham que devem receber.

Mas o que mais me preocupa é que todos os sinais são que o “efeito estufa” passou de moda para quem decide, devido à brutal força da realidade, com o aumento da energia produzida por carvão e a recusa de aceitar o nuclear como alternativa ao fóssil.

Estamos, pois, a perder a batalha da sobrevivência futura da vida na Terra. Não seremos derrotados já em 2030, mas seguramente que o seremos antes de 2130. Se continuarmos assim.

O ELOGIO

Aos “mileuristas” (os que ganham à volta de 1000 euros por mês, menos de metade do que ganham os deputados, e que sobrevivem sem uma revolta geral), que Carlos Guimarães Pinto, deputado IL, referiu numa intervenção que está já viral nas redes sociais. E, claro, o elogio é também para ele.

A IL tinha proposto – como eu o fiz nos últimos anos – a redução de IRS desse grupo, o que custaria 3 mil milhões de euros quando o Estado recebe este ano por impostos mais 30 mil milhões do que recebia há 6 anos.

Os mileuristas estão há anos a ser derrotados, mas antecipo que as coisas acabarão por mudar. E bem o merecem.

LER É O MELHOR REMÉDIO

Mussolini in myth and memory”, de Paul Corner (Oxford Press) é uma obra que de forma equilibrada pretende desmontar uma visão dominante em Itália que tende a esquecer ou ocultar a realidade totalitária do fascismo, ainda que o autor reconheça que a sua brutal violação de direitos fundamentais não chega ao nível do nazismo e comunismo.

Ao ler o livro (com cerca de 200 páginas), muitas vezes me lembrei e também me vi a comparar o fascismo com o salazarismo. Vale francamente a pena ler e traduzir.

E, no mesmo sentido, leiam “Fascismos: para além de Hitler e Mussolini”, do Professor Carlos Martins, onde o caso português é analisado.

A PERGUNTA SEM RESPOSTA

Nunca serão demais os elogios que Gouveia e Melo merece pelo que fez na campanha de vacinação contra a COVID.

Como seria antecipável, isso tornou-o um fortíssimo candidato presidencial para 2026. Até aqui tudo normal.

Recentemente fez declarações no sentido de que se não lhe tivessem dado a carreira militar que queria (ser Chefe do Estado Maior da Armada - CEMA) teria ponderado entrar na política.

Está iminente o início do processo de seleção do próximo CEMGFA (Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas) que deve estar concluído – segundo parece – até final de janeiro.

O futuro CEMGFA deve vir da Força Aérea, sendo que o atual é da Marinha.

As perguntas são óbvias e dirigem-se ao CEMA: será que se não for escolhido para CEMGFA vai entrar na política? E se não pretende isso, qual a razão para as declarações recentes a falar do que se passou há cerca de um ano?

A LOUCURA MANSA

São um tríptico coerente e lógico de recusas seguintes:

  1. de uma exposição sobre as vítimas do nazismo e do comunismo, decidida pelo Presidente da Assembleia de República;
  2. do PS, em comemorar o 25 de novembro de 1975, apesar de ser o partido que mais importante foi nessa data ocorrida há 47 anos;
  3. de metade dos eurodeputados do PS em apoiar a deliberação do Parlamento Europeu que, por maioria muitíssimo esmagadora (82,5% a favor, 10% contra e 7,5% abstenção), deliberou considerar a Rússia um “Estado patrocinador do terrorismo” devido em especial à invasão da Ucrânia.

85% dos eurodeputados socialistas europeus (147) votaram a favor da moção. O PS português forneceu metade dos abstencionistas.

O que isto revela é o afastamento da sua posição tradicional, uma colonização cultural crescente dos socialistas portugueses pelo radicalismo proto-comunista e o abandono da sua memória histórica como partido que mais consistente foi na luta contra os liberticidas antes e depois do 25 de abril.

A loucura é deitar pela janela o seu património e não perceber que cedo ou tarde vão pagar um preço elevado em termos políticos e isolar-se da tendência europeia.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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