Opinião

Orçamento do Estado – notas finais

Orçamento do Estado – notas finais

António Filipe

Membro do Comité Central do PCP e professor universitário

A maioria absoluta de que o PS dispõe permitiu-lhe gerir as votações na especialidade do Orçamento do Estado sem outro critério que não fosse o mais estreito taticismo partidário

Ainda antes de ter sido apresentado, o Orçamento do Estado para 2023 já tinha aprovação garantida. Até aqui não há novidade nem motivo de espanto. Foi assim sempre que um qualquer Governo dispôs de uma maioria absoluta de apoio parlamentar, tanto nos casos em que um só partido dispunha dessa maioria (PSD de Cavaco Silva e PS de José Sócrates), como nos casos em que houve acordos de coligação maioritária (AD de 1979 a 1983, Bloco Central de 1983 a 1985, coligação pós-eleitoral PSD/CDS de 2002 a 2005 e PAF de 2011 a 2015).

Sabe-se à partida que em situações de maioria absoluta como a que existe atualmente na AR, não só a proposta de lei do Governo está aprovada à partida como serão aprovadas todas as propostas apresentadas na especialidade pelo partido que apoia o Governo e serão rejeitadas todas as propostas apresentadas na especialidade pelos partidos da oposição, a menos que o partido do Governo entenda que algumas devem ser aprovadas. Até aqui nada de novo.

Contudo, o processo que levou à aprovação do Orçamento para 2023 contém algumas novidades que importa assinalar.

A primeira é o sentido geral do Orçamento. Depois de ter aprovado há poucos meses um Orçamento para 2022 que afirmava ser “o mais à esquerda de sempre”, o mesmo Governo fez aprovar um Orçamento para 2023 que, sendo de continuidade em relação ao anterior que foi publicado apenas há cinco meses, contou com o apoio explícito dos detentores do poder económico.

Antes do debate na Assembleia da República e por via de um acordo de concertação social feito com o patronato (com o habitual beneplácito da UGT), o Governo deixou muito claro que este seria o Orçamento dos patrões. A declaração de António Saraiva de que se fosse deputado o votaria favoravelmente é mais claro que tudo o mais que possa ser dito ou escrito a esse respeito.

No momento em que obteve a maioria absoluta, consciente de que a ficou a dever a muitos eleitores que antes haviam votado à esquerda do PS e que não entenderam as razões da rejeição do Orçamento do Estado no final de 2021, António Costa enfatizou a ideia de que, apesar da maioria absoluta, iria manter uma postura de diálogo com os partidos à sua esquerda.

Pois bem: O Orçamento do Estado para 2023 é a negação cabal da seriedade desses propósitos. A forma como o PS geriu as votações na especialidade não teve nenhum outro critério que não fosse o mais puro tacticismo político. Se não, vejamos:

Das cerca de 1800 propostas apresentadas pelos partidos da oposição, o PS aprovou 67. O PAN e o Livre foram contemplados com a aprovação de 25 e 24 propostas respetivamente, o PSD com sete, o BE com cinco, PCP com quatro, a IL com duas, e o Chega com nenhuma.

De um ponto de vista das grandes opções orçamentais, as propostas aprovadas são financeiramente irrelevantes. Mesmo que algumas delas, tomadas isoladamente, possam ter algum significado financeiro, a maioria não tem. Avultam normas programáticas, intenções piedosas, medidas administrativas, compromissos de efetuar estudos ou de apresentar relatórios. O sentido da aprovação de propostas foi o de, mantendo intocadas as opções governativas, passar uma mensagem estritamente política.

Assim, o PAN e o Livre obtiveram do PS um prémio pela abstenção que, para usar um termo bíblico, corresponde a um prato de lentilhas. A disponibilidade destes partidos, manifestada desde o início, para a abstenção, pedia apenas que o PS desse alguma coisa em troca para salvar a face. Invocarão ambos os partidos ter obtido grandes vitórias. Dirá o PS, com razão, que ganhou duas abstenções a baixo custo.

Os votos favoráveis do PS em propostas do PCP, do BE, do PSD ou da IL tiveram um único objetivo: aprovar alguma coisa para que não se diga que o PS não aprovou nada vindo destes partidos. Já a rejeição de todas as propostas do Chega é compreensível. As propostas deste partido foram de tal modo demagógicas e incoerentes que, aprovar alguma, seria dificilmente explicável para quem quer ser levado a sério.

Finalmente, é possível dizer, como disse Eurico Brilhante Dias no encerramento do debate, que nas propostas na especialidade, o PS poucas vezes votou isolado. Só que não há nisso grande motivo de admiração. Salvo algumas exceções, as propostas vindas da direita são rejeitadas pelo PS e pela esquerda, e as propostas vindas da esquerda são rejeitadas pelo PS e pela direita. Sendo assim, difícil é ficar isolado.

Ao contrário do que diziam os partidos da direita e grande parte da comunicação social, os debates que se travavam em torno das propostas de Orçamento do Estado entre 2016 e 2021 não eram representações cénicas com desfecho anunciado à partida. E por isso, os Orçamentos entre 2016 e 2020 fizeram muita diferença, para melhor. Agora, que as coisas mudaram, o PS usou o debate orçamental na especialidade como um palco para passar uma mensagem política estritamente tacticista que não beliscasse, nem ao de leve, as suas opções de fundo.

É claro que estas manobras táticas não são mais que a espuma dos dias. O que é grave é que este Orçamento não vai resolver nenhum dos maiores problemas com que o país está confrontado. E o povo é que paga. Literalmente.

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