Opinião

Ceteris paribus, será Sócrates melhor que Costa?

Em 2022, a tresandar a 2009, lembro-me que ao menos, com Sócrates, 'ceteris paribus', ainda apostámos nas renováveis e ameaçámos uma reforma da Administração Pública. Convenhamos: política de energia e reforma do Estado sempre é melhor que falta de energia política e o Estado na reforma. Com Costa não há um vislumbre de visão, um assomo de desígnio, uma réstia de propósito que mobilizem o país

Vai por aí grande agitação a propósito da publicação do livro “Governador”, do Luís Rosa, que conta a história do Governador do Banco de Portugal Carlos Costa e do seu testemunho sobre o Primeiro-ministro António Costa. Entre o que o livro conta e as reacções que motivou não tem faltado assunto. Assunto sério: do Banif à alegada interferência de António Costa em favor de Isabel dos Santos. Assunto pouco sério: do processo por difamação posto por António a Carlos às vestes rasgadas dos soldados em defesa do general. Já tínhamos tido no cinema o drama Kramer contra Kramer, agora temos no teatro amador a tragicomédia Costa contra Costa. Aqui choramos menos, mas chocamo-nos mais.

Mas vacilo: quanto aos temas mais quentes, acho melhor não me meter nisso. Seguindo a velha máxima de António, à política o que é da política e à justiça o que é da justiça. E, estava eu nisso, lembrei-me de José Sócrates. Que saudades! Onde é que andam os fatos Armani, a retórica grandiloquente e a visão do animal feroz? Hoje é tudo pior: o corte dos fatos é uma miséria, o discurso é atabalhoado, a visão é míope. Infelizmente, não foi só no PIB per capita que regredimos, também perdemos em classe e ambição.

Diz o povo essa frase extraordinária, e profundamente conservadora, que bom de mim fará quem depois de mim vier. E, em 2022, a tresandar a 2009, lembro-me que ao menos, com Sócrates, ceteris paribus, ainda apostámos nas renováveis e ameaçámos uma reforma da Administração Pública. Convenhamos: política de energia e reforma do Estado sempre é melhor que falta de energia política e o Estado na reforma. Com Costa não há um vislumbre de visão, um assomo de desígnio, uma réstia de propósito que mobilizem o país.

Dizia ceteris paribus e que o país tresanda a 2009. Infelizmente, com os socialistas há coisas que nunca mudam. E uma das coisas que nunca muda é a sua estratégia visando o controlo dos poderes.

O capítulo do livro “Governador” que menos discussão causou é, porém, aquele em que melhor se revela a dupla natureza do poder socialista: mesquinho e controleiro.

"Eu tenho três problemas consigo", terá António Costa dito a Carlos Costa. E o estimado leitor, sabendo tratar-se de uma conversa entre o Primeiro-ministro e o Governador do Banco de Portugal, imagina três problemas relacionados com a supervisão bancária ou o controlo do risco de branqueamento de capitais, certo? Errado. Os três problemas que António Costa tinha com Carlos Costa, a fazer fé no relato, eram outros: a recondução de Carlos Costa, sobre a qual foi informado em cima da hora; o facto de não ter considerado Mário Centeno para director do Departamento de Estudos Económicos; e a existência de um alegado preconceito em nomear pessoas próximas ou militantes do PS que eram quadros do Banco de Portugal.

E eis, aqui, em três pontos, todo o programa político, o modus operandi e o ADN do PS retratados. A pequena preocupação com a ocupação dos lugares de poder em detrimento do exercício das grandes competências legais, o melindre pessoal pela falta de envolvimento na cadeia de poder no lugar do sentido de Estado, e a protecção da tribo partidária ao invés do estímulo e da recompensa do mérito.

Exagero? Não, bem pelo contrário. As evidências estão tão à vista e já falei tanto delas, que não só não exagero, como sou até bastante parcimonioso. A CRESAP, da última vez que vi (entretanto, deixei de me dar ao trabalho), confirmava quase 90% das escolhas políticas do PS para os altos cargos da Administração Pública; os cargos de dirigentes intermédios da mesma Administração Pública seguem exactamente o mesmo princípio, mas com menos escrutínio; nos reguladores, do despudor da transição directa do Ministro das Finanças para o cargo de Governador do Banco de Portugal (o mesmo por causa de quem António repreendeu, anos antes, Carlos) à expressão acintosamente desrespeitadora da separação de poderes dos reguladores, passando pelo controlo com outros ex-ministros de alguns desses órgãos, o tempo e o modo são sempre os mesmos: o tempo, o presente, o modo, o socialista; no Tribunal de Contas, se alguém levanta a menor adversativa sobre os propósitos do Governo, é substituído; na Procuradoria Geral da República, se alguém é inconveniente passa à história; para procurador-geral europeu, mente-se à União Europeia. E por aí fora vai.

Não vou sequer, por economia de espaço, por salubridade do ar e por fastio, falar sobre os ajustes directos duvidosos, as promoções e as conivências nepotistas e os favorecimentos tribais que, semana sim semana não, vão surgindo, um após outro, na comunicação social.

Dizia que tresanda a 2009. Mas, pelo menos com Sócrates, a coisa era à grande e à francesa, já com Costa é em pequeno e à portuguesa. Ceteris paribus.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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