Opinião

Em defesa da revisão da Constituição

Em defesa da revisão da Constituição

José Matos Correia

Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD

Sempre que a modificação da nossa lei fundamental teve lugar, o seu texto saiu melhorado

Iniciou-se um processo de revisão constitucional. E, como é usual, logo surgem aqueles que, rasgando as vestes na praça pública, manifestam a sua profunda angústia e preocupação com o que dela possa resultar.

Basta, porém, olhar para o historial, para evidenciar que este tipo de atitude não tem qualquer fundamento. Porque, sempre que a modificação da nossa lei fundamental teve lugar, o seu texto saiu melhorado.

Tal conclusão resulta evidente, desde logo, se atentarmos a quanto se passou em 1982 e em 1989, as duas revisões, de longe, mais importantes. No primeiro caso, pela “civilização do regime” com a extinção do Conselho da Revolução, pela criação do Tribunal Constitucional, pela eliminação dos desmandos ideológicos ligados à “transição para o socialismo”. No segundo, pela liberalização económica, pelo fim da irreversibilidade das nacionalizações, pela abertura da comunicação social aos privados, pela introdução do referendo nacional.

Mas, mesmos nas demais, menos centrais e abrangentes, inovações de relevo foram introduzidas em vários domínios.

Em 1992, a possibilidade de ratificação do Tratado de Maastricht e de adesão à moeda única. Em 1997, a concessão do direito de voto aos emigrantes nas eleições presidenciais, a admissão de candidaturas independentes nas eleições municipais, a obrigatoriedade do referendo sobre a regionalização. Em 2001, a eliminação de obstáculos à adesão de Portugal ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional e a inclusão de soluções que permitissem a nossa plena participação no Espaço Europeu de Segurança e Justiça. Em 2004, o aprofundamento dos poderes legislativos das Regiões Autónomas ou a introdução do princípio da limitação de mandatos. Em 2005, a possibilidade de realização de referendos sobre tratados relativos ao aprofundamento da União Europeia (embora, infelizmente, nunca utilizada).

Se é certo que, como consequência de tudo isto, temos hoje uma lei fundamental muito distinta da original, ela está ainda longe do que poderia (e deveria) ser. Porque, desde logo, continua a evidenciar a presença de muitas normas sem dignidade constitucional.

Os exemplos disso dariam para escrever outro artigo, muito mais longo, mas identifico alguns: normas sobre cooperativas e experiências de autogestão (artigo 85.º), sobre investimentos estrangeiros (artigo 87.º), sobre meios de produção em abandono (artigo 88.º), sobre planos (artigos 90.º a 92.º), sobre políticas agrícola, comercial e industrial (artigos 93.º a 100.º) ou – a cereja no topo do bolo – sobre organizações de moradores (artigos 263.º a 265.º).

Pior do que isso, porém, é o enviesamento político que ainda permanece em questões de primeira linha, com as consequências negativas que isso tem trazido para um País de recursos limitados como é o nosso e que a progressiva incapacidade de resposta dos serviços públicos tem evidenciado.

Refiro-me, em particular, à orientação estatista em matéria de saúde e de educação, remetendo os sectores social e privado para uma posição de subsidiariedade, que, com vantagem, deveria dar ligar a uma arquitectura de complementaridade e de funcionamento em rede.

Tenho a plena noção que não é desta feita que os indispensáveis avanços terão lugar. Porque não há revisão sem acordo entre o PS e o PSD. E já sabemos o que é o imobilismo dos socialistas, que, no passado, tanto atrasou a consagração de soluções em que, curiosamente, agora se reveem.

Mesmo assim, parece-me de registar a ambição que o projecto de revisão constitucional do PSD traduz em matérias como a coesão territorial, o aprofundamento dos direitos sociais, a independência das entidades reguladoras e, neste contexto, o reforço dos poderes do Presidente da República. Embora lamente que não se tenha ido mais longe em domínios como os que identifiquei acima ou se tenha incluído propostas, como a redução da idade de voto para os 16 anos, de que claramente discordo.

Para além das críticas quanto à oportunidade do processo (que não têm qualquer sentido), as maiores censuras têm sido dirigidas a dois aspectos em que, aparentemente, há condições de entendimento entre os dois principais partidos: o confinamento ou internamento por razões de saúde pública de pessoa com grave doença infectocontagiosa e o acesso dos serviços de informações aos metadados.

Confesso que, em ambos os casos, não compreendo a razão de ser de tais críticas.

Dentro de limites de razoabilidade e de proporcionalidade, a Constituição admite restrições legais a direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, quando interesses constitucionalmente protegidos o justifiquem.

A defesa da saúde pública é, seguramente, um deles. E o que é preferível: que, como sucedeu durante a pandemia, medidas desse tipo tenham sido adoptadas, porque eram absolutamente necessárias, mas sem o indispensável suporte constitucional ou prever expressamente essa possibilidade, com adequado controlo judicial?

Por outro lado, o combate ao terrorismo ou à criminalidade complexa e altamente organizada é, necessariamente, um imperativo de um Estado de Direito Democrático. Nesse contexto, o acesso a metadados é essencial (e sublinho que em causa estão dados relativos a tráfego e localização e não a intromissão nas comunicações, vulgo escutas). Como explicar, assim, que os nossos serviços de informações sejam os únicos na Europa que não dispõem desse instrumento? Mister é que, também aqui, os tribunais autorizem esse acesso e fiscalizem a sua utilização.

Tudo visto, não tenho, contudo, grandes esperanças quanto ao resultado final desta revisão. Embora a minha experiência na matéria (tive o privilégio de presidir, por duas vezes, a Comissões Eventuais de Revisão Constitucional e participei em outras três) me permita sublinhar que, por vezes, o resultado final é mais amplo (e melhor) do que as perspectivas iniciais sugeriam.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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