1. Em setembro de 2020, o embaixador americano de então em Portugal referia que chegara o momento de Portugal escolher entre o investimento americano ou o chinês no país. Na altura, demasiados concentraram-se na forma pouco cuidada do que dizia em vez de o seu conteúdo. O que até era entendível porque além da sua imagem estar acompanhada de um busto dourado da cara de Trump, a realidade é que aqui, tal como na maioria dos países europeus, estas afirmações teriam provavelmente sido ignoradas se pouco menos de dois meses depois o mesmo tivesse sido eleito como presidente dos EUA em vez de Joe Biden.
Hoje, passados apenas dois anos, o que já não se pode ignorar é o facto de as receitas turísticas oriundas dos EUA ultrapassarem em mais de 14% o mesmo período em 2019 e os resultados das empresas portuguesas naquele país excederam em larga escala os indicadores dos últimos anos. É também à luz disso mesmo que o Turismo de Portugal encetou uma excelente campanha de marketing em pleno Times Square, Nova Iorque, na última sexta-feira. A presidência de Biden tornou-se indispensável, mas não estamos sozinhos. Muitos países europeus têm sentido o mesmo e existe uma clara aproximação ao investimento americano em detrimento do chinês. Tudo está interligado e o gigante asiático ressente-se na Europa e noutras geografias.
2. O desenlace da desastrosa e imperdoável invasão de Putin da Ucrânia destrói a própria Rússia, mas também fere outros países de regimes autocratas, a sua bússola e a própria economia. A China está à cabeça. Ninguém esperava do Ocidente uma resposta tão acentuada e firme com o passar do tempo em nome dos ucranianos, mas também em nome da causa democrática e da liberdade através dela. Biden é o principal responsável. Não só impulsionou a União Europeia como colocou desde cedo os EUA num nível claramente superior no apoio que disponibiliza à Ucrânia em todas as esferas.
Talvez seja exagero constatar que além de Zelensky, possa existir um milagre Biden, bem mais temperado, como referiu Bernard-Henri Levy no seu estilo sempre romanceado. Mas o facto é que já no final de 2021, ainda antes da invasão de Putin da Ucrânia, o presidente norte-americano promoveu o que prometera durante a sua campanha: uma cimeira para a democracia que reuniu cerca de 100 países, deixando naturalmente a China e Rússia de fora e que foi, por um lado, a procura das alianças de alguns Estados democráticos e, por outro, o chamamento de outros para aquilo que acreditava ser o grande desafio geopolítico atual. Há oito meses na Polónia, entre refugiados e impressionado com os destroços e a calamidade humana da guerra, ao invés do que alguns consideraram ser uma gaffe, Biden ao visar Putin com aquelas palavras, decretou ainda o all in da sua administração no apoio à defesa ucraniana. Ao fazê-lo, cimentou também aquilo que disse ser desde sempre o grande desafio da sua política externa. A opinião especializada americana percebeu-o, a europeia não.
3. Praticamente definidos os resultados das midterms americanas e num volte-face relativo ao que era projetado, os democratas estão bastante próximos de um dos melhores resultados de sempre neste tipo de eleições para quem detém a presidência. Obama, por exemplo, teve a vida bastante mais dificultada e o controlo do Senado permitirá ao atual presidente manter o apoio à Ucrânia e prosseguir grande parte da sua linha na política externa.
4. A estratégia levada ao extremo por parte de Trump e que foi mesmo um regresso ao America First acabou culminada naquela saída tenebrosa e desastrosa do Afeganistão, já com a administração Biden. Talvez tenha servido como aviso, até porque podia-lhe ter custado a presidência, mas a realidade é que outra América “possível” está de regresso à geopolítica. Duvido que uma União Europeia, tão perentória a enviar alguns sinais de desconforto na questão afegã e sob a qual também tinha responsabilidades, se tivesse encontrado de forma tão unida na questão ucraniana e na defesa de certos valores que estão na sua génese, sem essa mudança e liderança na política externa de Biden.
O retraimento estratégico dos EUA nos últimos anos pode ainda ter dado a ilusão de existir um poder multipolar na geopolítica e de não nos mantermos no mesmo mundo unipolar. Nem a China chega minimamente perto dos EUA em termos de capacidades militares nas mais variadas esferas e com o desacelerar maior da sua economia, tenho poucas dúvidas que se internamente na América não existisse um quase estado de guerra civil entre dois extremos, esse poder unipolar dos americanos voltaria a ser uma certeza. Resta saber até quando a polarização sem travão corrói a América, com que consequências e se Biden ao contrário dos republicanos, mantém a sua ala mais extrema longe da condução do que mais interessa. A Europa agradecê-lo-ia, Portugal beneficiaria e países como a Rússia e a China certamente desejam o regresso de Donald Trump em 2024.
Que não haja dúvidas quanto a isso.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes