Opinião

Tigray: uma região a ferro e fogo

Tigray: uma região a ferro e fogo

Luís Correia

Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Wroclaw, Polónia

Depois de praticamente dois anos de conflito, tendo começado em novembro de 2020, a região do Tigray, no norte da Etiópia, esteve completamente isolada do mundo exterior, sem acesso aos serviços mais básicos, como eletricidade, telefone e internet, já para não falar da falta de cuidados de saúde, hospitais com serviços limitadíssimos e das atrocidades que têm sido cometidas: limpeza étnica, violência e abuso sexual

Tigray, uma região no norte da Etiópia, que faz fronteira com a Eritreia e o Sudão (um dos maiores países africanos), tem sido, ao longo dos últimos dois anos, palco de verdadeiros conflitos internos, longe do olhar da comunidade internacional, que pouco ou nada faz para atenuar a situação e ajudar milhões de pessoas que vivem num dos países mais pobres do mundo, a Etiópia.

Quem são os Tigray e a Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF)?

A Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF) é um movimento rebelde que nasceu em meados da década de 1970, sendo nessa altura uma pequena milícia que tinha como objetivo combater a ditadura militar marxista da Etiópia, tendo derrubado o governo marxista em 1991.

Tigray, que foi lar de um antigo reino que governava a Etiópia, acabou por ser marginalizado por um governo central ao longo do Século XX.

Os Tigrayans, como são conhecidos os habitantes da região, são um grupo étnico que representa uma fatia muito pequena da população da Etiópia (cerca de 7%), com os Oromo e os Amhara a representar mais de 60%.

Apesar de serem um grupo étnico pequeno, não os impediu de dominar a Etiópia durante largos anos, juntamente com a TPLF.

Foi sob o comando do primeiro-ministro Meles Zenawi que a Etiópia emergiu como um país estável numa região nada amigável. Apesar da instabilidade em volta do país, Zenawi conseguiu que a Etiópia tivesse um crescimento económico significativo e se aliasse aos Estados Unidos da América, demonstrando o seu apoio com o envio de tropas para a Somália, em 2006, para combater as milícias islâmicas.

No entanto, nem tudo eram rosas. Internamente, o governo liderado por Zenawi e pelo TPLF reprimia a oposição política, restringia a liberdade de expressão e torturava os reclusos.

De 2012 em diante, após a morte de Zenawi, o governo enfraqueceu, bem como a TPLF, tendo como consequência ondas de protestos antigovernamentais, nomeadamente em 2016, acabando por levar Abiy ao poder, em 2018.

2018: o ano em que Abiy Ahmed acendeu o rastilho

Bem antes de a guerra civil ter começado, o primeiro-ministro Abiy Ahmed já tinha colocado na mira o poder da Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF), um movimento rebelde que tem vindo a dominar a política etíope nos últimos quase 30 anos.

Apesar de ter sido ministro no governo dominado pela TPFL, Abiy Ahmed começou a distanciar-se do movimento rebelde, o que acabou por aumentar as tensões e enfurecer os líderes da TPLF.

Como consequência, em setembro de 2020 os Tigray decidiram realizar eleições parlamentares regionais como um desafio direto a Abiy Ahmed, algo que não correu bem, acabando por se tornar um conflito violento.

2020: a gota de água

Tudo se tornou mais violento no final do ano de 2020, em novembro, quando o Governo etíope, sob o comando do primeiro-ministro Abiy Ahmed, iniciou operações militares na região de Tigray contra o partido que estava no poder, a Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF), depois de esta ter atacado e tomado conta de um quartel militar.

As estruturas mais importantes da região, como hospitais, escolas, fábricas e empresas, foram completamente destruídas por diversas forças militares: forças federais etíopes, milícias regionais e forças armadas da Eritreia.

Não bastassem já os conflitos e os confrontos internos, as ajudas humanitárias eram e continuam a ser rejeitadas, forçando a fuga de mais de dois milhões de pessoas da região, nomeadamente para o Sudão, deixando ainda outros tantos a precisar de assistência e de ajuda...que tarda a chegar ou simplesmente nunca chega.

Em novembro de 2021, a guerra civil acabou por se descontrolar, quando combatentes da região do Tigray avançaram rumo à capital da Etiópia, Addis Ababa, forçando o primeiro-ministro Abiy Ahmed a declarar estado de emergência.

Mas a chave para o seu sucesso no campo de batalha estava no ar: uma frota de drones armados que tinham sido adquiridos aos Emirados Árabes Unidos, à Turquia e ao Irão, atacaram as forças do Tigray.

Depois de dois anos de isolamento do resto do mundo, e já com as consequências de uma pandemia, a região estava bastante fragilizada em todos os setores: económicos, sociais, políticos...e os serviços não eram os melhores: hospitais sem condições e sem medicamentos, população sem alimentos e sem água potável.

Para juntar a este desastre humanitário, todas as forças interventivas foram acusadas de inúmeros abusos, nomeadamente sexuais, contando ainda com as acusações de uma limpeza étnica em Tigray.

As tropas da Eritreia, que lutavam ao lado das forças governamentais, foram as que cometeram os piores abusos, tendo sido ainda aquelas que nunca se sentaram à mesa das negociações de paz.

Durante o ano de 2022, dois acordos de cessar-fogo foram alcançados: um no início do ano, que acabou por ser quebrado em agosto, e outro durante o mês de novembro. Foi com enorme surpresa que o segundo acordo foi alcançado na guerra civil etíope, com ambos os lados a concordarem em acabar com o conflito que já dura há dois anos, tendo levado à morte de milhares de pessoas, a inúmeros alertas de fome e à fuga de milhões de pessoas para países vizinhos.

Este acordo entre o Governo etíope e as forças do Tigray visa permitir a retoma da ajuda humanitária internacional, visto que quase 90% da população da região precisa de ajuda alimentar, com 1/3 das crianças subnutridas, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS).

No entanto, desta vez o acordo não se fica por aqui e ambas as partes decidiram ir mais longe: tanto o Governo etíope como representantes da Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF) concordaram em assinar um plano para o desarmamento e para a restauração de serviços essenciais para a região, como hospitais, escolas e empresas, permitindo ainda que a ajuda exterior chegue ao Tigray.

Manter-se-á o acordo? Ou será este quebrado mais uma vez, deixando milhões de pessoas no desespero e às portas da morte?

Mais uma região devastada pelo terror, onde a comunidade internacional parece não ter interesse, continuando a assobiar para o lado.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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