A Revisão Constitucional normalmente acaba mal
Se é verdade que o resultado de uma revisão constitucional não se define quando começa, mas quando acaba, não é menos verdade que os anteriores processos acabaram sempre mal e que o atual não começa bem
Membro do Comité Central do PCP e professor universitário
Se é verdade que o resultado de uma revisão constitucional não se define quando começa, mas quando acaba, não é menos verdade que os anteriores processos acabaram sempre mal e que o atual não começa bem
Portugal vive um dos mais longos períodos de estabilidade constitucional da sua História. Na verdade, a última revisão constitucional foi aprovada em 2015 para consagrar exclusivamente a possibilidade de um referendo que nunca chegou a ocorrer, pelo que, em termos substanciais a última revisão constitucional relevante ocorreu em 2004, ou seja, há 18 anos. Houve tentativas falhadas de revisão: em 2010 por iniciativa do PSD; em 2014 por iniciativa do PSD/Madeira; em 2020 por iniciativa do Chega. Todas essas iniciativas foram rejeitadas.
Não é por acaso que todas essas iniciativas de revisão constitucional tenham vindo da direita. Sempre foi assim. O PSD nunca se conformou com a Constituição aprovada em 1976 profundamente identificada com os valores da Revolução de Abril. Aprovou-a com reserva mental, tudo fez para impedir a sua vigência, e manteve sempre objetivos de revisão constitucional no seu programa político. Em todas as revisões constitucionais efetuadas, o PSD obteve ganhos de causa com o apoio do PS, mas findo cada processo de revisão constitucional, logo reivindicava o seguinte.
Foi durante os Governos PSD/CDS de Passos Coelho e Paulo Portas que melhor se revelou a relevância da Constituição para defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, quando o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade dos cortes de subsídios de férias e de Natal por violação de princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático constitucionalmente consagrado. Essa decisão provocou críticas virulentas vindas de personalidades da direita contra o Tribunal Constitucional e a própria Constituição, e isso mesmo permitiu chamar a atenção para a importância democrática da defesa da Constituição e da efetividade dos princípios nela consignados.
Quando em 2020 o Chega lançou uma iniciativa provocatória de revisão constitucional teve a resposta que merecia: o desprezo de quase todos os partidos, à exceção da IL.
Sucede, porém, que quando, em 2022, o Chega retoma a provocação, é secundado pelo PSD, com a apresentação de um projeto. O caso poderia ficar por aí, dado que não haverá qualquer revisão constitucional sem os votos do PS, só que o PS apresentou um projeto de revisão, dando assim assentimento a que possa ser aprovada uma revisão constitucional na sequência de uma iniciativa provocatória do Chega. O PS poderia evitar esse desfecho e não o fez. O processo começa mal.
Diz António Costa que o que determina um processo de revisão constitucional é a forma como acaba e não como começa. O problema é que normalmente acaba mal, com o PS a ceder a reivindicações do PSD.
O projeto do PS contém à partida duas questões problemáticas que o PSD não terá quaisquer problemas em subscrever. São os casos da constitucionalização de medidas privativas de liberdade por decisão de autoridades de saúde e do acesso aos metadados de comunicações por parte dos serviços de informações.
Ficamos assim perante a possibilidade real de retrocessos constitucionais pela mão do PS e do PSD, e tendo em conta o enorme rol de malfeitorias que constam do projeto do PSD (para não referir os do CH e da IL) e que haverá tempo de dissecar noutra oportunidade, a questão é a de saber que preço estará o PS disposto a pagar pelos votos do PSD para aprovar as suas propostas.
No passado, o tributo pago pelo PS aos objetivos do PSD foi elevadíssimo. Em 1989, deu lugar ao processo de privatizações e a retrocessos na gratuitidade do acesso à saúde, com as consequências dramáticas que hoje conhecemos. Em 1997, liquidou a possibilidade de regionalização do continente. E outros exemplos poderiam ser citados, com graves consequências de retrocesso constitucional nos domínios económico, social e político.
Ao apresentar o seu projeto de revisão, o PS afirma o seu caráter progressista. Esperemos que não seja como o “Orçamento mais à esquerda de sempre”. Não sabemos como este processo vai terminar, mas sobram motivos de preocupação para quem entende que a defesa da Constituição continua a ser um imperativo democrático.
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