Pedro Adão e Silva, actual Ministro da Cultura e antes disso comissário para a celebração dos 50 anos do 25 de Abril, disse que o 25 de Novembro era uma data que dividia e que dizia pouco à sociedade portuguesa. Tem razão.
O 25 de Novembro foi, de facto, uma data que dividiu e que, talvez sem surpresa, ainda divide: uma data que divide os que pugnaram - e pugnam - por uma democracia de tipo liberal em Portugal e os que asseguravam - e ainda tentam - que Portugal não teria a menor possibilidade de ser uma democracia como as da Europa Ocidental (Cunhal dixit).
E tem Pedro Adão e Silva razão, também, quando afirma que é uma data que diz pouco à sociedade, o que é, neste caso, convenhamos, uma pena. E digo pena não em tom de lamúria, mas para assinalar um castigo; um castigo por nos deixarmos manietar, enquanto sociedade, por quem se apoderou da narrativa sobre a história do país e desse período em concreto, e por nunca termos feito um esforço significativo, salvo honrosas excepções nas quais destaco o CDS, para mudar isso.
Dito isto, o 25 de Novembro, que se celebra esta semana, é uma data essencial. Não só uma memória do passado, mas um compromisso regular, de presente e de futuro, ao qual não se pode faltar. Para perceber a sua importância, nada melhor do que reler Álvaro Cunhal. Foi o que fiz. E, não sei se por distanciamento dos acontecimentos, se por falta de pachorra para com tanta vitimização e indulgência comunista que por aí anda, achei o relato do 25 de Novembro feito pelo histórico líder comunista uma pieguice revisionista insuportável. Uma falácia. Disse falácia? Talvez devesse ter dito Fallaci. Mas, antes da intrépida Oriana, prossigamos com Cunhal.
Álvaro Cunhal, num mimimimi lamuriento que fica mal a uma têmpera forjada na frieza estalinista de Moscovo, diz sobre o 25 de Novembro que "está mais que provado, assumido e confessado, que se tratou de um golpe militar contra-revolucionário há muito em preparação num turbulento processo de arrumação e rearrumação de forças." E que "na grande aliança contra-revolucionária, internamente muito fragmentada, participavam fascistas declarados e outros reaccionários radicais, que visavam a instauração de um nova ditadura, que tomasse violentas medidas de repressão, nomeadamente a ilegalização e destruição do PCP". Segundo Cunhal, em conclusão, e a partir de uns parcos relatos de movimentações do PCP nos dias 24 e 25 de Novembro, a tese subscrita por Soares de que o golpe do 25 de Novembro tinha sido preparado pelo PCP e por militares a ele afectos visava o controlo político pela força do país, seria mentira. Mais do que isso, uma injustiça para com o PCP.
Almas mais cândidas e de olhos mais tapados, ou falcões comunistas conscientes, como teremos oportunidade esta semana de ver escrever por aí, embarcaram nesta patranha. Porém, meses antes, numa entrevista a Oriana Fallaci, o vitimizado Cunhal, mostrava-se mais transparente: “Nós, os comunistas, não aceitamos o jogo das eleições (...) Se pensa que o Partido Socialista com os seus 40 por cento de votos, o PPD, com os seus 27 por cento, constituem a maioria, comete um erro. Eles não têm a maioria”. “(...) Se pensa que a Assembleia Constituinte vai transformar-se num Parlamento comete um erro ridículo. Não! A Constituinte não será, de certeza, um órgão legislativo. Isso prometo eu. Será uma Assembleia Constituinte, e já basta (...). Asseguro-lhe que em Portugal não haverá Parlamento (...)”.
Não deixa de ser curioso que, com esta firmeza antes, queira diminuir o seu papel nos cercos à Assembleia depois. Desses cercos, Soares dirá ter-se tratado de "uma verdadeira milícia paramilitar, que enquadrava os manifestantes, [e] se preparava para ocupar certas posições chave perto das saídas". Cunhal, esse, fala numa intentona fascista que engloba PS, PPD e CDS, que queria deslocar a Assembleia para o Porto para daí levar a cabo uma guerra civil contra a "comuna de Lisboa".
Cunhal acusa, portanto, os que lhe goraram as expectativas daquilo que se preparava ele próprio para fazer. Segundo ele, “as eleições constituíam um perigo”. E dizia ainda que, e isto é importante, "(...) [n]unca vi uma revolução que se desenvolva sem o apoio dos militares ou de uma força militar. Veja Cuba. Como Castro não dispunha de um exército teve que fazê-lo. E nós, que dispomos de um exército já estruturado, devemos ignorá-lo? Acredite-me, sem armas não se consegue nada”. É este o homem que em Junho de 1975 diz isto, para depois, depois de fracassado o golpe de Novembro, vir reescrever a história dando a entender que não pretendia impor uma ditadura comunista, pela força das armas, em Portugal.
E se hoje, olhando para a exiguidade eleitoral do PCP, podem os mais novos achar excessiva a importância dada a Cunhal, talvez recordar as palavras de Oriana Fallaci não seja inútil: “O homem que hoje tem mais autoridade em Portugal, o homem que hoje tem influência sobre os militares que ocupam o poder, o homem que venceu apesar de ter perdido as eleições, é Álvaro Cunhal".
E eis-nos chegados aos motivos pelos quais o 25 de Novembro não é só uma memória histórica, mas um imperativo político presente e futuro. Foi só a 25 de Novembro que Portugal estabilizou a sua democracia. Foi só no 25 de Novembro que aquele dia inteiro e limpo, de que Sophia nos falou, se cumpriu. Quem celebra o 25 de Abril e não celebra o 25 de Novembro não celebra a democracia e a liberdade.
Hoje, quando se discute a revisão constitucional, quando ainda se lança opróbrio sobre todas as forças políticas à direita do PS, quando se erode a separação de poderes, celebrar o 25 de Novembro é ainda essencial. E é essencial recordar também que o PS, que bem tinha estado em 1975 com Soares, optou por amochar, com Costa, aos caprichos comunistas durante o tempo da geringonça.
Hoje, em 2022, continua o país com o preâmbulo constitucional mais imbecil e iliberal dos países civilizados. E se isso incomoda poucos, na medida em que tal visão se imiscuiu em cada recanto do debate político nacional empobrece muitos.
Vejamos o oxímoro constitucional: "A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de (...) abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno". Hoje, olhando para todos os indicadores relativos de comparação com o espaço europeu, Portugal não está mais livre, não está mais justo e não está mais fraterno. Mas está, indiscutivelmente, mais socialista.
Parece incrível, mas Cunhal, o derrotado de facto do 25 de Novembro, conseguiu, ainda assim, o prodígio de transformar aquela derrota - que inviabilizou o seu objectivo maior - numa vitória que persiste quase 50 anos depois. Segundo Cunhal “(...) É um facto indiscutível que Portugal actualmente se dirige para o comunismo. A única coisa que não posso dizer é que forma assumirá esse socialismo. Talvez devesse poder dizê-lo, dado que sou o responsável por um partido que não foi derrotado, muito pelo contrário. Nós, os comunistas, quere-lo-íamos integralmente mas devemos ter em conta uma realidade muito complicada e muito contraditória.” No fim, ganhou o PS e perdeu o país. Exagero na crítica ao PS?
Foi Costa, quando em 2015 derrubou o muro que o 25 de Novembro tinha erigido, que acabou por dar corpo às palavras de Cunhal: "Nós, os comunistas, já tínhamos afirmado aos militares que o PPD não devia estar presente [nas eleições], que não se podia conduzir o país ao socialismo por meio de uma ampla coligação democrática." A fatura de anos de geringonça estamos agora a pagá-la.
É tempo, portanto, de celebrar os heróis que impediram que Portugal se tornasse numa Cuba no Ocidente da Europa. E não deixar que a memória morra, e que Portugal reveja na prática o preâmbulo constitucional afirmando uma decisão do povo português de abrir caminho para uma sociedade menos socialista, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno. Para isso, convém denunciar toda a indulgência para com os comunistas que não podem nunca ser democratas. E gritar, sem reservas: 25 de Novembro sempre, comunismos nunca mais.
Textos de apoio:
Cunhal, Álvaro, A Verdade e a Mentira Na Revolução De Abril
Entrevista de Álvaro Cunhal a Oriana Fallaci (excertos AQUI)
Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia.
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes