Opinião

Nas teias da justiça

Nas teias da justiça

Mariana Leitão

Chefe de Gabinete e membro do Conselho Nacional da IL

O sistema judiciário português continua a ser incapaz de dar uma resposta em tempo útil, minando a confiança dos cidadãos nas instituições, na própria forma como a sociedade está organizada e no efetivo acesso à justiça e no tratamento igual perante a lei

A justiça é um dos pilares fundamentais de um Estado de Direito e visa garantir que todos são tratados em função das regras commumente aceites, intervindo quando tal não acontece.

Todos sabemos os inúmeros problemas que a justiça em Portugal enfrenta, que se refletem na relação das pessoas com o próprio sistema judicial, dado que, muitas vezes, permite que culpados nunca cheguem a tribunal e inocentes vejam a sua vida destruída sem sequer chegarem a tribunal.

O que constatamos é que o sistema judiciário português continua a ser incapaz de dar uma resposta em tempo útil, minando a confiança dos cidadãos nas instituições, na própria forma como a sociedade está organizada e em algo que devia ser transversal, isto é, no efetivo acesso à justiça e no tratamento igual perante a lei.

Esta desconfiança quanto à justiça toma contornos ainda mais graves quando se trata de crimes cometidos por titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos.

A confiança nas instituições é fundamental numa democracia e essa confiança está sistematicamente a ser abalada, quer pelos prevaricadores, que se aproveitam das respetivas circunstâncias e do cargo que ocupam para se favorecerem, quer pelo próprio sistema judiciário, que demora demasiado no tempo de investigação o que, em muitas situações, leva aos arquivamentos em que, culpados ou não, os indiciados por um ou mais crimes nunca cheguem a ter uma sentença.

Nos anos mais recentes, têm sido inúmeros os casos envolvendo titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos de corrupção, prevaricação, abuso de poder, peculato, entre outros, que têm marcado profunda e negativamente o país. Por um lado, pelo dano económico que trazem; por outro, pela descredibilização que passa a impender sobre toda a classe política, sobre as instituições democráticas e sobre a própria justiça.

Por estes dias voltámos a estar confrontados com mais uma série de suspeitas e averiguações a titulares de cargos públicos, pessoas eleitas a quem são feitas acusações de aproveitamento desses mesmos cargos ou por tomadas de decisão que violam a lei. Quantos anos vamos aguardar até ao desfecho destes processos? Quantos anos vão estar estas pessoas em funções, nestes ou noutros cargos de natureza política, até um tribunal determinar se são ou não culpados?

Este problema não é novo. Há questões culturais que marcaram décadas e cujas raízes se aprofundaram no poder local, por força de os decisores políticos estarem mais próximos das pessoas. Assumia-se ser normal dar um emprego à filha do amigo, fazer uma adjudicação ao primo ou atribuir a concessão de um serviço ao irmão. Afinal, a filha do amigo é boa gente, o primo até trabalha bem e o irmão anda atrapalhado. Tudo isto sem que houvesse sequer a real perceção do quão erradas e nefastas eram e são estas condutas.

Desse plano mais circunscrito rapidamente se passou a agir em benefício próprio, utilizando o poder político como esfera de influência, o interesse pessoal como mote e a decisão como benesse. Muitas vezes por conta de um sentimento de impunidade associado a uma justiça ineficaz. Os autores dos crimes sentem que a verdade nunca virá à tona ou que, mesmo sendo apanhados, dificilmente terão de arcar com as consequências dos seus atos, porque o mais provável é que os processos sejam arquivados ou que os ilícitos em causa prescrevam.

Há, por isso, um consenso generalizado sobre a necessidade de se implementar reformas no sistema judiciário português capazes de produzir os efeitos necessários para que o funcionamento da justiça seja mais eficaz.

No entanto, apesar desse consenso, a alternância das agendas partidárias tem travado a urgência dessa reforma e comprometido a capacidade de mudar efetivamente a justiça. Ou seja, não se conseguem estabelecer compromissos duradouros, o que, inevitavelmente, tem levado a que as reformas necessárias não tenham, até hoje, sido feitas.

Na verdade, mantemos um sistema processual arcaico e desfasado do mundo moderno, praticamente inalterado desde há largas décadas. Mantemos uma enorme desconfiança em relação a modelos mais inovadores e de sucesso comprovado noutros sistemas judiciários, que podíamos usar como exemplo para promover mudanças concretas, mas, como há ainda uma enorme resistência à mudança, continuamos apenas a olhar para dentro.

Continuamos a sofrer de falta de meios de investigação, de falta de recursos humanos qualificados e disponíveis para se modernizarem e de falta de formação especializada.

Mantemos uma discriminação no acesso, com custas judiciais altíssimas que afastam o cidadão comum do seu mais básico direito à justiça. É preciso incentivar os julgados de paz e apostar em mecanismos de mediação para tornar o acesso à justiça mais abrangente e mais célere - e, por maioria de razão, mais democrática.

O preço que pagamos por uma justiça ineficiente é um problema que tem dois lados. Por um, há a necessidade de acelerar a investigação e as decisões judiciais para que quem incumpre a lei seja efetivamente punido. Por outro, para que eventuais inocentes não fiquem indeterminadamente no limbo à espera da absolvição, uma vez que meras suspeitas têm enormes custos e consequências, tanto pessoais como profissionais, que dificilmente são reversíveis. Este limbo, que protege culpados e estigmatiza inocentes, tem de ser mitigado. Só assim se garante uma justiça mais democrática e uma democracia mais justa.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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