Opinião

A lição dos ucranianos

A lição dos ucranianos

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

Os ucranianos ensinam-nos que vale a pena lutar pela liberdade e que há causas e pessoas pelas quais vale a pena morrer. E também pedem que repensemos o nosso lugar no mundo. Em Portugal, estamos demasiado silenciosos

É preciso má-fé, cinismo ou cumplicidade para não ver a Libertação nas imagens que chegam de Kherson. Com certeza que há propaganda. Claro que muitas daquelas bandeiras ucranianas e europeias vieram de Khyv. É óbvio que os jornalistas partilharam as imagens mais fortes. Mas nada disso altera o facto fundamental: a felicidade dos que são libertados.

Aconteça o que acontecer, a libertação de Kherson vem com três lições. Duas, sobre os povos em geral, e os ucranianos muito em particular. E uma sobre nós, europeus da União Europeia.

A primeira lição é sobre liberdade. A festa da libertação – não é exagero nenhum dizê-lo assim – recorda facilmente a libertação da Europa ocupada na reta final da segunda Guerra Mundial. A vontade de ser livre é bem mais universal do que muitos gostariam. Mais do que soberania, autonomia, escolha, está em causa a Liberdade para poder existir.

A outra história que aquelas imagens contam é sobre a coragem. A enorme maioria dos civis que aparecem em Kherson são mulheres e jovens. Foi por eles que os militares ucranianos se dispuseram a morrer. E têm morrido muitos. Mas nunca a coesão, a determinação comum dos ucranianos esteve em causa. Naquelas imagens percebemos por quê, por quem. Essa lição é, também, um peso que os supostos realistas do lado de cá carregam. Vão lá explicar a cada um dos mortos, a cada uma das histórias de tortura, a cada um dos que celebram a libertação, que a sua liberdade vale pouco e que o seu destino devia ser o que a Rússia achasse melhor. Digam-lhes agora que não merecem, que não valem a pena. Que não pode ser, porque irritam Putin e nos saem caros na conta do gás e da eletricidade.

A terceira lição é a mais importante para a Europa da União Europeia. É sobre o seu lugar no Continente e no mundo.

Desta vez não foram os americanos, os britânicos e o resto do mundo a juntar-se à resistência europeia para libertar um continente submetido. Desta vez os europeus estiveram do lado certo desde o princípio. Claro que sem a pressão americana desde antes da guerra e todo o apoio depois, e sem a força do Reino Unido, a Europa não teria sido suficiente. Talvez até nem tivesse chegado a ser. Mas isso não diminui em nada o papel que os europeus tiveram, têm tido e vão ter de continuar a ter. São os próprios ucranianos que o dizem, quando lutam por poder escolher a União Europeia. Levadas por alguém ou não, são bandeiras europeias que agitam nas ruas de Kherson. Nunca tal tinha acontecido. Nem em 1989.

Já foi dito mil vezes, a invasão russa da Ucrânia acordou a Europa da ilusão da paz e segurança sem custos. E mudou o mundo em que vivíamos desde o fim da Guerra Fria. Ainda não saberemos se é o fim da globalização ou, mais provavelmente, o começo da reglobalização, com diferentes alinhamentos e dependências económicas. Mas sabemos que o mundo em que vivemos mudou. Nas regras do comércio e da concorrência, na relação com a China, no crescer do protecionismo, no reforço do papel da UE na Europa e da importância da NATO na segurança europeia. Mas também nas prioridades estratégicas, nos investimentos que se decide que devem ser apoiados, nos países terceiros que mais importam. E nada é ainda certo nem fechado. Mas está praticamente tudo em causa. Infelizmente, essa discussão praticamente não é tida no debate político em Portugal.

À parte do PCP, que não tem deixado o assunto e é bastante claro e nada surpreendente, na maioria dos discursos dos partidos políticos portugueses tem-se dado menos atenção à guerra e às suas consequências do que se devia. Para lá do apoio quase unânime e quase inquestionável, ouvem-se pouco. Estamos a ver o mundo mudar, estamos a assumir adversários, estamos a redesenhar as nossas alianças, estamos a redefinir o papel da Europa e da NATO.

Há dias os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE discutiram o quadro da nova relação com a China. Agora discutem a revisão da estratégia da relação com a Rússia. Seria bom que as lideranças políticas em Portugal notassem e dissessem o que pensam. Nunca, no passado recente, foi tão importante discutirmos a política europeia e internacional e a nossa posição. Os partidos políticos têm de participar activamente desta conversa. Isto é mais importante que o Orçamento de Estado.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas