Opinião

Tribunal Constitucional ou bengaleiro da República?

Tribunal Constitucional ou bengaleiro da República?

António Filipe

Membro do Comité Central do PCP e professor universitário

Passados mais de três anos sobre a aprovação pela Assembleia da República de uma lei que criou uma “Entidade para a Transparência” esta não existe e a maioria que aprovou essa lei só pode queixar-se da sua insensatez

A “Entidade para a Transparência” foi criada por iniciativa do PSD e do BE. Foi aprovada por lei orgânica no verão de 2019, com os votos favoráveis do PS, do PSD e do BE, e deveria entrar em funcionamento no início da XIV Legislatura, ou seja, em outubro de 2019. Passaram mais de três anos e não havendo entidade nenhuma, os partidos que aprovaram a lei culpam o Tribunal pelo seu incumprimento. Contudo, durante o debate da lei houve quem avisasse (concretamente o PCP) que a lei muito dificilmente poderia ser cumprida nos prazos previstos e que tal situação só contribuiria para o descrédito da Assembleia da República. Não quiseram ouvir e agora confrontam-se com a situação que criaram.

A Ideia do PSD e do BE de criar uma entidade da transparência pendurada no Tribunal Constitucional para receber e fiscalizar as declarações de rendimentos e património dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos surgiu no âmbito do chamado “pacote da transparência”. Tais pacotes costumam surgir no final das legislaturas, em momentos pré-eleitorais, e perante a proliferação legislativa já existente sobre essa matéria dá azo a verdadeiros concursos de ideias entre os partidos para que cada um se possa apresentar como o campeão da corrida pela transparência. Só que, de entre essas ideias, nem todas são boas.

A ideia de criar esta nova entidade foi criticada pelo PCP no plano político por duas principais ordens de razões. Em primeiro lugar, pela sua desnecessidade. Há muito que há titulares de cargos políticos e altos cargos públicos que apresentam declarações de rendimentos e património junto do Tribunal Constitucional e poderiam continuar a fazê-lo sem necessidade de criar uma nova entidade. Alargando a obrigatoriedade da apresentação de declarações a mais cargos, a questão a resolver seria ver qual a entidade melhor colocada para receber essas declarações. A receção das declarações, sendo inclusivamente desmaterializada, nunca seria um problema.

Em segundo lugar pela sua inadequação, que se prende com a questão da fiscalização, essa sim, juridicamente relevante. É que a fiscalização do património e rendimentos dos titulares de cargos públicos, designadamente quando à origem dos proventos de cada um, não deve competir a uma entidade administrativa, mas a uma entidade jurisdicional, ou seja, ao Ministério Público. Sendo a entidade da transparência uma entidade administrativa (dado que não é o facto de funcionar junto do Tribunal Constitucional que lhe dá um caráter jurisdicional), a sua criação não faz sentido. Se é só para receber as declarações, serve de pouco. Se é para as fiscalizar, estamos a substituir o Ministério Público por uma entidade administrativa, erigida numa espécie de polícia dos políticos.

Dissemos na altura, em nome do PCP, que a Assembleia da República estava a tratar o TC como se este fosse uma espécie de bengaleiro da República: não sabendo onde colocar uma entidade, pendura-se no TC.

Contudo, a proposta da criação da entidade foi também contundentemente criticada pelo Tribunal Constitucional por razões substantivas e por razões práticas.

Por razões substantivas, o Tribunal chamou a atenção para o seu estatuto e natureza nos termos da Constituição. O Tribunal Constitucional (TC) é um tribunal superior “criado especificamente para administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional”. Sucede que, para além disso, ao longo dos anos, sucessivos diplomas legais relativos à organização, funcionamento e processo do TC vieram alargar as suas competências a outros domínios. Tornaram-no depositário das declarações de rendimentos dos titulares de cargos políticos, sendo que a respetiva fiscalização cabe ao Ministério Público, e encarregaram-no de receber, fiscalizar e julgar as contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, criando para o efeito a Entidade das Contas e Financiamento dos Partidos junto do Tribunal Constitucional. Daí que a ideia de criar mais uma entidade junto do TC foi considerada por este como mais um desvirtuamento do seu estatuto constitucional.

Também por razões práticas. O TC alertou a AR para o facto de não ter qualquer possibilidade de acolher a nova entidade nas suas instalações, já sobrelotadas devido ao espaço ocupado pela Entidade das Contas. A resposta dada pela maioria parlamentar adepta da Entidade da Transparência foi determinar ao TC que providenciasse uma sede para a instalar em Coimbra. Segundo as informações transmitidas pelo TC, o cumprimento de tal tarefa não tem sido fácil.

Vários partidos lamentam que a entidade ainda não exista e culpam o TC. É de facto de lamentar que uma lei que já devia ter entrado em vigor há três anos ainda não tenha saído do papel, mas se isso acontece não foi por falta de aviso. É uma evidência que o facto de o Tribunal Constitucional discordar de uma lei não é razão para que a não cumpra. Só que as razões invocadas pelo TC para o facto de a lei não estar a ser cumprida não resulta dessa discordância, mas das dificuldades práticas que a seu tempo foram assinaladas, sem que os proponentes fizessem caso disso, cientes de que o papel aguenta tudo o que se lá escreva.

De facto, a Entidade da Transparência, nos termos em que foi criada, faz lembrar aquele poema para crianças de Vinícius de Moraes sobre uma casa muito engraçada que não tinha teto, não tinha paredes, nem tinha chão. Assim, a ideia de criar uma entidade para reforço da transparência só contribuiu, até agora, para o desprestígio da Assembleia da República e do Tribunal Constitucional. E não foi por falta de aviso sobre as dificuldades práticas com que tal decisão iria deparar. Como não quiseram saber, só podem queixar-se de si próprios.

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