A polémica à volta do secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Miguel Alves, e a sua demissão esta quinta-feira, depois de ser acusado num processo judicial, levanta três perplexidades. Cada uma delas mais grave e inquietante que a outra
A demissão do Governo de um secretário de Estado não é necessariamente caso para grande alarme. Excepto quando se trata do secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, seu braço-direito e forçado a deixar o Executivo depois de acusado na Justiça (e ainda bem que esta funciona) por suspeitas do crime de prevaricação, num processo relacionado com a sua atuação como autarca em Caminha.
O Caminhagate levanta três perplexidades, por ordem crescente de gravidade e preocupação:
Primeiro,
Quem agora deixa o Governo não é apenas um secretário de Estado, mais um ajudante do Governo, sem grande peso ou impactos políticos. Não! Quem agora deixa o Governo é o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, que António Costa foi buscar a Caminha, onde era presidente de Câmara e para onde tinha ido depois de ter passado noutros gabinetes liderados pelo atual primeiro-ministro.
Miguel Alves é uma ‘cria’ de António Costa, um político, como outros que bem conhecemos (Graça Fonseca, Marcos Perestrello, João Tiago Silveira, Rocha Andrade), nado e criado na esfera política de Costa no Partido Socialista. Miguel Alves foi chamado para este Governo depois de um conjunto de trapalhadas e inépcias que levaram o Executivo primeiro a vários ensaios, desde afastar Ana Catarina Mendes da tarefa de coordenação, à contratação de um consultor de comunicação para liderar o processo e garantir que a máquina funcionava de forma oleada. Nada disso resultou e Costa chamou Miguel Alves. Portanto, o que agora temos é que aquele que foi chamado para garantir a eficaz coordenação do Governo se tornou ele próprio um enorme foco de instabilidade e sinal de descoordenação.
Aquele que foi chamado para garantir a eficaz coordenação do Governo tornou-se um enorme foco de instabilidade
Segundo,
O que têm em comum todos os factos envolvendo a atuação de Miguel Alves e que vieram a lume nos últimos dias, do envolvimento nos processos judiciais Éter e Teia (neste foi agora acusado, justificando a sua demissão) aos negócios com o empresário Ricardo Moutinho, a quem entregou 300 mil euros por conta da construção de um pavilhão de exposições que nunca chegou a avançar? O que têm em comum é que todos estes factos e todas estas atuações mais ou menos questionáveis aconteceram antes de Miguel Alves se tornar secretário de Estado de António Costa. Antes!
Ou seja, das duas uma: ou António Costa e o seu Governo desconheciam o que se tinha passado, o que demonstraria uma enorme incúria e incompetência na forma como são escolhidos aqueles que governam o país (não se sabe tudo do passado, não se averigua, não se pesquisa?); ou então, e não menos grave, quem escolheu Miguel Alves sabia das dúvidas, das suspeitas e dos factos e mesmo assim decidiu nomeá-lo para um cargo político da estrita dependência e confiança do primeiro-ministro.
Será que António Costa achou que tudo passaria da mesma forma que o vento vem e vai e nada mais acontecia? A pergunta é óbvia: será que o primeiro-ministro, sempre tão hábil politicamente, perdeu o mojo? Perdeu o toque? Perdeu a sensibilidade para a ação política? Fartou-se da governação interna e está é preocupado com os encontros internacionais com os seus congéneres?
Será que o primeiro-ministro, sempre tão hábil políticamente, perdeu o mojo? Perdeu o toque? Perdeu a sensibilidade para a ação política?
Terceiro,
Por último, a perplexidade que deixa é a forma como são tratados e geridos os dinheiros dos contribuintes. A forma obscena como aqueles que têm a incumbência de administrar o Estado, seja a nível nacional, seja a nível regional ou local, entendem pôr e dispor de recursos que não são seus e são escassos. Esta perplexidade, embora menos presente em toda esta polémica das últimas semanas, é provavelmente a mais grave e inquietante de todas.
No caso Teia, em que Miguel Alves é acusado, sabemos que um histórico autarca socialista do Norte andava a falar com antigos colegas seus que lideravam câmaras da região para os convencer a contratarem uma empresa de comunicação e consultoria que era da sua mulher. E os autarcas em funções iam nisso. No caso Caminha, cujos contornos ainda agora estamos a conhecer, é chocante a forma como foi usado dinheiro público. Na entrevista que dá ao Expresso desta semana, o empresário Ricardo Moutinho (o tal que recebeu os 300 mil euros) dá respostas bem reveladoras do que falo:
“nós percebemos que havia muitas câmaras que depois da troika ficaram num contexto de endividamento que era altamente desfavorável. Existe uma coisa no Tribunal de Contas que são os rácios de endividamento que impedem as câmaras de fazer mais dívida para financiar novos projetos”. Vai daí, falaram com “dezenas de municípios, de norte a sul do país. Tivemos reuniões com presidentes de câmara em mais de 20 municípios. Porque é que falei da Guarda? Na Guarda foi detetada uma oportunidade de negócio concreta, com um investidor que concebe, constrói e arrenda. O que é que o município ganha com isto? Não tem de se endividar. O endividamento é feito pelo privado.”
Bem sabemos que os populismos e as demagogias que minam as democracias se alimentam do medo e do ódio e das indignações fáceis. Mas convém que quem ocupa cargos públicos tenha uma bitola bem mais elevada. Senão, no final do dia, de pouco adianta andarmos a queixar-nos de Trump, de Ventura, de Salvini ou de Le Pen.
Convém que quem ocupa cargos públicos tenha uma bitola bem mais elevada. Senão, no final do dia, de pouco adianta andarmos a queixar-nos de Trump, de Ventura, de Salvini ou de Le Pen
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