A politização da polícia representa um risco real para a construção de um Brasil próspero e progressista. Romper com uma cultura de impunidade deve estar entre as primeiras prioridades de Lula, logo a partir do momento em que tomar posse
O presidente eleito do Brasil, Lula da Silva, derrotou, a 30 de outubro, o presidente em exercício e representante da extrema-direita, Jair Bolsonaro, naquelas que foram amplamente consideradas as eleições mais importantes desde o regresso do país à democracia. Durante a campanha eleitoral, houve muita especulação sobre se Bolsonaro tinha ou não o tipo de apoio institucional dos militares e de outros líderes políticos para levar a cabo um golpe de Estado, caso perdesse. Sabemos agora que não tem. As instituições democráticas do Brasil estão a funcionar.
Mas o que a última semana revelou é que o presidente cessante, juntamente com os seus restantes aliados e os seus filhos políticos, instrumentalizaram estrategicamente as forças policiais, com possíveis consequências a longo prazo.
A politização da polícia representa um risco real para a construção de um Brasil próspero e progressista. Romper com uma cultura de impunidade deve estar entre as primeiras prioridades de Lula, logo a partir do momento em que tomar posse.
No dia das eleições, uma força policial em particular surgiu como o braço armado do bolsonarismo: a Polícia Rodoviária Federal, que, por coincidência, é controlada diretamente pelo presidente e não pelos governadores dos estados. Enquanto milhões de brasileiros foram às urnas, esta força policial levou a cabo um conjunto de ações altamente invulgar.
Na sequência de um plano que foi, alegadamente, cogitado na residência presidencial, nos dias anteriores às eleições, esta força criou um número sem precedentes de postos de controlo policial (quase 600), com o objetivo de mandar parar veículos e verificar documentos de identificação, impedindo que as pessoas chegassem às urnas. Estes postos de controlo foram fixados em maior número na região Norte e Nordeste, onde Lula reúne maior apoio. A participação policial, no que diz respeito à supressão de votos, está agora a ser investigada pelo Ministério Público Federal em Brasília
Desde as eleições que os protestos antidemocráticos se têm vindo a espalhar por todo o país. Ao entenderem as palavras e os atos de Bolsonaro como um incentivo à manifestação, os seus apoiantes foram para as ruas e bloquearam estradas com camiões, havendo registo de mais de 962 bloqueios em 25 estados. Alguns manifestantes apelaram à intervenção militar. Outros até evocaram o nazismo.
A Polícia Rodoviária Federal desempenhou novamente um papel problemático. A mesma força que com tanta eficácia parou os autocarros no dia das eleições parecia mover-se ao ritmo de um caracol quando se tratou de remover bloqueios, tanto que o Supremo Tribunal Federal ordenou que o seu comandante fosse multado em 100 mil reais por cada hora daquilo que parecia tratar-se de inação. Num vídeo inquietante que se tornou viral, um agente policial disse a uma multidão animada que a sua única ordem era estar nas ruas com eles. Em alguns Estados, a Polícia Militar teve de ser chamada pelos governadores de Estado para efetuar o trabalho que os seus colegas não quiseram ou não puderam fazer.
A Polícia Rodoviária Federal é relativamente jovem em comparação com outras forças de segurança no Brasil. Não tem uma identidade forte, o que a torna mais aberta à manipulação política. Silvinei Vasques, o diretor-geral, alegadamente recomendado para o seu posto por Flávio Bolsonaro, em 2021, transformou esta força policial. Através de mecanismos de financiamento não transparentes, conhecidos como “orçamento secreto,” desenvolvidos durante a presidência atual e que estão agora sob investigação, dois dos filhos de Bolsonaro, que ocupam cargos eleitos na legislatura, terão enviado milhões de reais a Vasques e a outras altas patentes. Vasques chegou mesmo a apelar, nas redes sociais, a que as pessoas votassem em Bolsonaro.
Sob a liderança de Vasques, a Polícia Rodoviária Federal começou a expandir a sua atuação – de um âmbito de trabalho mais tradicional de policiamento das autoestradas, passou a ser participante ativa em operações policiais nas favelas, por exemplo, atuando fora da sua jurisdição e para lá do seu mandato legal. Foram também de sua autoria vários casos recentes de violência extrema, entre os quais o massacre de 26 homens suspeitos de planearem um assalto a um banco em Minas Gerais, bem como o uso brutal de gás lacrimogéneo num suspeito já detido, o que causou a sua morte, filmada ao vivo.
A pressão política forçou, por fim, a Polícia Rodoviária Federal a fazer o seu trabalho. Mas Lula e a sua administração vão ter de procurar formas de responsabilizar os agentes que apoiaram os apelos ao golpe e encorajaram a agitação antidemocrática. O Brasil não pode ter uma força policial a trabalhar para prejudicar o presidente, seja através de medidas ativas, como a supressão do voto, ou passivas, quando os agentes simplesmente olham para o outro lado e não atuam. A estabilidade futura do país depende disso.
- Erika Larkins é professora associada de Antropologia e presidente do Centro de Estudos Brasileiros Behner Stiefel da Universidade Estadual de San Diego, Califórnia (EUA).
- Susana Durão é professora Associada de Antropologia e coordena a Secretaria de Vivência dos campi da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo (Brasil).
(Tradução de Nelson Filipe)
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