Em Portugal, como em tantos países do mundo, há escolas a serem ocupadas pelos jovens que se mobilizam pela justiça climática. Ainda bem. Num mundo que caminha irresponsavelmente para uma catástrofe, eles e elas são a voz do bom senso e da urgência. Oxalá consigam dar esta lição a um mundo governado por adultos que se têm revelado sucessivamente incapazes de estar à altura do momento.
António Guterres, é justo reconhecê-lo, tem sido um contraexemplo. À frente da ONU, tem-se mostrado incansável na denúncia e no alerta sobre o que estamos a viver e na insistência de um pacto entre os países. Estamos numa “autoestrada para o inferno”, disse Guterres na abertura da Cimeira do Clima. Não é exagero. Para não atingirmos um ponto de não retorno teríamos de baixar drasticamente as emissões e não aumentar a temperatura mais de 1,5º C, mas continuamos com uma média de 2,8°.
Na Europa, a temperatura sobe ao dobro do resto do mundo. Nalguns casos, como o da Alemanha (mas também a China) anuncia-se até, perante as falhas do sistema energético atual visibilizadas pela guerra, um regresso ao carvão e o abandono da substituição dessa fonte energética. Ao mesmo tempo, as empresas de combustíveis fósseis lucram como nunca (a Galp, por exemplo, aumentou 86% os lucros este ano!).
Por outro lado, os países mais pobres são aqueles que mais têm sofrido com os efeitos das alterações climáticas. Cheias, ciclones, ondas de calor e vagas de frio têm causado incontáveis prejuízos materiais e humanos. Há Estados em que a tragédia não é apenas uma metáfora ou um cenário, mas uma realidade vivida, com a agricultura a que estavam habituados a não ser mais possível ou com o seu território a desaparecer, literalmente, com a subida do nível do mar, como acontece em países insulares.
Não só continuamos a “tratar a atmosfera como um esgoto”, para usar a expressão de Al Gore, como os países mais ricos, que são os que historicamente mais contribuíram e os que mais beneficiaram economicamente com as emissões de carbono, continuam a não investir suficientemente na transição, a não reduzir as emissões na dimensão necessária e a não financiar, como seria seu dever, os países mais pobres.
Calcula-se entre 160 mil e 340 mil milhões de dólares por ano o valor que seria preciso para as políticas de “Perdas e Danos” que visam compensar os países mais pobres através do financiamento de medidas de mitigação e adaptação. Mas os países do norte global (os mais ricos) estão longe sequer do compromisso proposto por Guterres e pela ONU: 100 mil milhões de dólares anuais para este pacto, em que cada um é chamado a contribuir em função das emissões já lançadas. Não só o valor das verbas transferidas está ainda a um terço dessa meta mínima como alguns países, com os EUA, Canadá e Austrália à cabeça, estão no pelotão da frente dos que mais poluíram e dos que menos contribuíram, em termos relativos.
De acordo com um relatório da Carbon Brief, Portugal também está longe de ter contribuído com o que devia: menos 30% do que era sua obrigação. Mais preocupantes são as declarações do ministro Costa e Silva. Depois de em Portugal se ter conseguido enterrar, em 2018 e na sequência de um importante movimento, os 15 contratos para exploração de gás, o responsável governamental pela economia já deu vários sinais de que quer reabrir essa frente.
O simbolismo desta Cimeira do Clima ser no Egito é duplo. Por um lado, a realização da COP no continente africano chama justamente a atenção para a urgência deste pacto de “Perdas e Danos” entre os países mais ricos e o Sul Global, num contexto em que a desigualdade se agrava. Por outro, a escolha do Egito é altamente problemática. Trata-se de um país com 60 mil presos políticos, em que as manifestações estão proibidas há dez anos e em que os ativistas estão impedidos de fazer protestos de rua durante a COP.
Se o greewashing é sempre problemático, se é sempre criticável que haja empresas e Estados que utilizam a agenda climática para fingir, de forma oportunista, que se preocupam com o clima quando acontece o contrário, tentando comprar assim a sua desculpabilização, como acontece com tantos patrocínios completamente contraditórios com as práticas das empresas em causa, neste caso é ainda pior.
A questão do clima está hoje na agenda política porque houve um movimento social a empurrá-la, a obrigar os Estados a não a ignorar. Porque houve as greves climáticas estudantis, porque existiu quem boicotasse empresas e ocupasse as ruas e as escolas, como está a acontecer agora, para chamar a atenção para o problema. Por isso é tão desconcertante e tão mau sinal que a Cimeira aconteça num país em que os principais impulsionadores desta agenda - os movimentos sociais e os protestos pela justiça climática - estão interditos. Não há justiça climática sem direitos humanos e não há direitos humanos com repressão política e sem liberdade de expressão. O silêncio do governo português sobre isto, a manter-se, não me representa.
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