Opinião

A enorme vitória da democracia brasileira

A enorme vitória da democracia brasileira

António Filipe

Membro do Comité Central do PCP e professor universitário

Basta pensar na dificuldade de que se revestiu, na atitude de Bolsonaro e dos seus mais fanáticos seguidores, e nas previsíveis consequências de uma reeleição do candidato derrotado, para concluir da enorme importância e dimensão da vitória eleitoral de Lula da Silva

Optei intencionalmente por não escrever a quente sobre o resultado das eleições ocorridas no Brasil na passada semana. Escrever em plena festa da vitória comporta sempre o risco de nos deixarmos envolver pelo entusiasmo e de ficarmos por abordagens simplistas de fenómenos complexos.

A vitória de Lula da Silva foi difícil. Só alguém muito distraído poderia pensar que fosse fácil. Sabia-se que, não havendo uma vitória na primeira volta, tudo se tornaria mais difícil. Ao longo de todo o mês de outubro, Bolsonaro usou e abusou dos meios do Estado, designadamente meios financeiros, para comprar votos, e a máquina eleitoral bolsonarista recorreu a todo o arsenal de mentiras, manipulações, chantagens e ameaças, e a tudo o que pôde recorrer, com o objetivo de manter o poder a todo o custo.

A campanha de Lula, contando desta vez com apoios de que não tinha na primeira volta, conseguiu vencer a máquina bolsonarista e vencer as eleições com o maior número absoluto de votos obtidos por um candidato em toda a História do Brasil.

Os resultados da segunda volta tornam claro, duas coisas: Lula da Silva era o único candidato capaz de derrotar Bolsonaro e a sua vitória só foi possível pela frente ampla que conseguiu gerar em defesa da democracia brasileira. Para muitos eleitores, a escolha era entre um fascista e um democrata. A maioria optou pela democracia.

A candidatura de Lula foi, em si mesma, a primeira derrota de um golpe de Estado iniciado em 2014, onde convergiram os poderes económico, legislativo, judiciário, militar e mediático, com o objetivo de afastar o PT do poder. Um poder económico que financiou as manifestações que, a partir de 2014, semearam o caos no Brasil a pretexto de uma hipócrita exigência de investimento na saúde e na educação; um poder legislativo que, com base num inexistente crime de responsabilidade, destituiu a Presidente eleita Dilma Rousseff; um poder judiciário que, infiltrado por juízes e procuradores de extrema-direita, forjou acusações de corrupção sem pés nem cabeça contra Lula da Silva com o objetivo de o impedir de concorrer às eleições, recorrendo à sua prisão política ilegal por cerca de 500 dias; um poder militar que chegou a ameaçar o Supremo Tribunal Federal para o impedir de ordenar a libertação de Lula da Silva; um poder mediático que interveio ativamente em todos os momentos do golpe, convocando e mobilizando para manifestações, divulgando ampla e intensivamente as acusações forjadas contra Lula da Silva, fazendo uma falsa associação entre a corrupção e o PT, e contribuindo ativamente para o crescimento de um discurso de ódio e de sentimentos antidemocráticos na sociedade brasileira que culminaram na eleição de Bolsonaro em 2018.

No rescaldo das eleições de 2018 seria temerário prever a derrota de Bolsonaro em 2022. Essa derrota foi possível devido a vários fatores. Desde logo, a persistência e a coragem dos democratas brasileiros que lutaram palmo a palmo pela democracia, pela defesa de direitos populares ameaçados, pela denúncia da farsa judiciária em torno de Lula da Silva, pela criação de condições para a vitória eleitoral em 2022.

Depois, a enorme tragédia que foi a governação bolsonarista: a negação da pandemia que foi responsável por centenas de milhares de mortos; a regresso do Brasil ao mapa mundial da fome, de onde os Governos de Lula e Dilma o tinham retirado; o isolamento internacional do Brasil que deixou de ser respeitado e se tornou motivo de chacota universal pela boçalidade das posições políticas e atitudes pessoais do seu presidente; a afronta permanente com o poder judicial; o nepotismo e a corrupção dos círculos político e pessoal de Bolsonaro; a apologia permanente do ódio, do racismo, da xenofobia, da posse de armas, do obscurantismo e da barbárie.

Finalmente, a afirmação do poder judicial através do Supremo Tribunal Federal que, vendo a sua própria existência ameaçada pelo bolsonarismo, acabou por determinar o fim da prisão ilegal de Lula da Silva, permitir a sua reabilitação e a denúncia da parcialidade dos seus acusadores, e apesar de todas as pressões, conduzir o processo eleitoral em termos democráticos.

É sabido que a demora de Bolsonaro em se pronunciar sobre os resultados eleitorais se deveu a tentativas de obter apoios, designadamente nos meios militares, para pôr em causa os resultados eleitorais. Goradas essas tentativas, até perante o reconhecimento quase unanime dos resultados nos planos nacional e internacional, a contestação nas ruas ficou limitada aos bolsonaristas mais fanáticos e arruaceiros.

Passada a festa, é impossível subestimar as dificuldades da futura governação de Lula da Silva, não obstante a flexibilidade tática que lhe é reconhecida. Não se trata da questão obviamente já reconhecida de que o futuro Governo não será um Governo do PT mas um Governo de conciliação com outras correntes políticas. Trata-se também de reconhecer que o futuro Governo terá de conviver com um Congresso onde as forças mais reacionárias têm uma influência muito significativa e que, não obstante a derrota eleitoral, a extrema-direita brasileira continua a ter um apoio social preocupante.

Seria futurologia fazer vaticínios sobre sucessos e dificuldades da governação do Brasil nos próximos anos, mas uma coisa é certa: perante a catástrofe que seria a reeleição de Bolsonaro, a vitória de Lula da Silva é uma vitória da democracia e abre a legítima esperança de um Brasil socialmente mais justo e internacionalmente respeitado.

Dirão os menos otimistas que o mais difícil vem a seguir. Sem subestimar as dificuldades futuras, não estou de acordo. O mais difícil até agora, que era derrotar Bolsonaro nas eleições, foi conseguido.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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