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Opinião

O mundo exclusivo dos radicais

O mundo exclusivo dos radicais

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

A radicalização dos espaços públicos e dos debates políticos nacionais é muito grave, mas a sua eventual contaminação da política na Europa seria fatal para a União Europeia

Citar as discussões do Twitter é o equivalente contemporâneo de observar um país estranho pelas opiniões do taxista do aeroporto, um clássico de algum jornalismo do século passado. Mas às vezes é irresistível.

Há duas semanas Joana Fonte, uma utilizadora do Twitter nacional com umas poucas centenas de seguidores, resolveu desabafar sobre a impossibilidade de pessoas de esquerda serem amigos e falarem com pessoas que têm opiniões de direita. “Sejam honestos: como é que vocês (pessoal de esquerda) conseguem ser amigos de pessoal de direita? que conversas é que têm? sobre se vai chover amanhã?”

Para algum sossego e conforto, houve rapidamente uma multidão de críticos. Mas, na sua enorme maioria, tentavam explicar-lhe, uns mais civilizadamente que outros, que havia muitos temas de conversa. Muitas conversas que não eram sobre política. Coisa que a autora contestava mais ou menos com o clássico “tudo é política”, e o resto dos assuntos são futilidades.

A reação dos que tentaram explicar que há vida para além da discussão política é generosa, mas falha no essencial. E o essencial é mesmo muito importante.

Quando a twiteira portuguesa diz que não percebe como uns conseguem falar com os outros, está a dizer, sem sequer se impressionar, que não acha possível haver gente com opiniões substancialmente diferentes que mereça ser tratada com consideração, porque se pensam muito diferente é porque não são respeitáveis. Não são bons, no fundo.

Joana Fonte não está isolada nem é original. À extrema esquerda e à extrema direita pensa-se normalmente assim. Só se pode mesmo pensar assim. O problema é que este raciocínio tem colonizado territórios que já foram dos moderados. (Agora chama-se moderado a quem não anda de tocha a perseguir quem pensa diferente.)

A ideia fundamental da democracia é ser processual. É a melhor maneira de arbitrar, de negociar, de resolver divergências. A democracia não é boa por causa do resultado. (Embora seja, de facto, a forma de obter melhores resultados, ao longo do tempo. Mas a questão não é essa.) A grande virtude da democracia é ser a melhor e mais aceitável forma de uma comunidade política escolher entre opções alternativas. E, com excepções tão limitadas quanto possível (e desejável!), essas opções devem poder ser mesmo muitas e diferentes. Tantas e tão diferentes quanto as múltiplas perspectivas que há nessa comunidade política. Isso, porém, implica duas premissas que os radicais não concebem: que o outro e a sua opinião são legítimas. E que manter o processo é mais importante do que obter o nosso resultado. O que, de novo, só é possível se se aceitar que o resultado alternativo é péssimo, terrível, mas legítimo.

O problema não é quem pensa que não é possível estar com quem quer que seja sem discutir política. O problema é achar que não é possível respeitar que, e quem, se pense muito diferente. E, consequentemente, que se possa ir ao jogo democrático e perder para quem pensa o oposto de nós.

Isto tudo é menos surpreendente do que devia. Por um lado, a discussão política tem sido crescentemente pessoalizada e radicalizada. Sobretudo fora da política. Não é novidade os políticos insultarem-se. A história do debate parlamentar, aqui e lá fora, está recheada de ofensas. Algumas deliciosas. O que acontece, porém, é que o espaço público se alargou mas, ao mesmo tempo, reduziu-se a visibilidade do que é público e publicado. A competição entre causas, campanhas, indignações, escândalos é tal que só é visível o que é mais grave do que a causa anterior. Tudo tem de ser emergência, definitivo, fundamental porque só é visto quem se destaca, e quem se destaca é quem grita mais e melhor.

Há uma absolutização das causas. O escândalo é o novo argumento de autoridade. O que implica que todo o compromisso é uma impossibilidade. Se for aceitável ter opiniões nuanceadas, achar que sim, mas… torna-se fraca a causa. Ou isto - seja lá o que for - é o maior problema e escândalo que existe, ou não merece atenção. O que implica a impossibilidade de falar e ouvir o outro, de negociar ou ceder.

Praticamente 50 anos depois do 25 de Abril, isto devia ser tão evidente que devia ser ridículo dizê-lo, mas para os novos fundamentalistas não é. E são muitos. Ou, pior, são muito ruidosos e ocupam o centro do palco com as suas opiniões extremas. Mesmo que minoritárias.

Este processo de radicalização dos espaços públicos e dos debates políticos nacionais é muito grave, mas a sua eventual contaminação da política europeia seria fatal para a União Europeia (UE).

A UE é, precisamente, um exercício de compromisso permanente. Entre Estados, entre regiões, entre ideologias, entre interpretações diferentes das mesmas ideologias conforme a história e a tradição local. E se não for, os exits suceder-se-ão. Por isso a arquitectura institucional europeia, que contribuiu para que os processos de decisão sejam demorados e muitas vezes excessivamente conciliadores, está pensada para acomodar o maior número possível destas divergências. Mas nas mãos destes talibãs de sofá seria um lugar onde só a vitória de um dos lados seria possível. E, lá está, os outros acabariam a ficar de fora. O que os radicais, se lhes perguntarmos, acham que não é uma má ideia. A sua ideia de democracia é restritiva. Como seria a sua Europa.

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