Foi quase uma ironia. Quanto há alguns dias se juntaram, num evento na Arábia Saudita, os CEOs dos dois maiores bancos americanos, dos dois principais fundos soberanos árabes, de duas das maiores empresas de mineração e energia e de dois fundos de investimento globais para discutirem as diversas crises que estamos a enfrentar, o consenso foi: “precisamos de mais e melhores líderes.” A resposta é relativamente trivial.
Mas no contexto português ganha proporções maiores. Por duas razões. A reação quase consensual à morte de Adriano Moreira consolidou a ideia de que os portugueses não temem abdicar das suas responsabilidades individuais em nome da segurança de um líder forte. Entronizamos, sem maior verificação, quem consiga traçar uma trajetória coletiva que apazigue os nossos desassossegos individuais. Gostamos mais do conforto da passividade do que do risco da iniciativa. Quando nos desnorteamos, viramos instintivamente o olhar para cima à espera de uma instrução.
Por isso a sociedade portuguesa está coroada de vultos, que só nós conhecemos. Personalidades, que só nós aplaudimos. Protagonistas, que só nós seguimos. Nas nossas famílias, empregos, comunidades e redes sociais procuramos o chefe, o comendador, o patriarca, o sacerdote, o influencer. Lidamos bem com a hierarquia. Ao longo dos anos, os nossos instintos centenários para escrever a história universal foram-se afunilando até ao limite das nossas bordas territoriais.
E o problema agudiza-se porque aqueles que, com mérito, nos puseram em bicos de pé estão a morrer, sem deixar herdeiros. Agustina e Freitas do Amaral morreram em 2019. Eduardo Lourenço em 2020. Sampaio e Carlos do Carmo em 2021. Paula Rego e Adriano Moreira em 2022. Vieira da Silva, Torga, Saramago, Cunhal, Soares, Agostinho da Silva, Natália Correia e tantos outros – sepultados. De largas dezenas, sobram-nos apenas uma meia dúzia de influentes com a regularidade moral e a sobriedade pública dignas de serem porta-vozes daquilo que somos ou do que gostaríamos de ser.
O excesso de referências paroquiais e a ausência de referências com maior gravitas acarreta riscos. Desacelera o dinamismo e potencia o populismo. Mas Portugal tem mostrado, nas últimas décadas democráticas, uma imensa incapacidade em formar líderes. Nas instituições europeias, somos dos países mais sub-representados a nível de quadros políticos e técnicos. É um problema crónico de esvaziamento da influência internacional de Portugal. Nos rankings internacionais de qualidade dos gestores empresariais, ocupamos posições sofríveis. 55% dos empregadores portugueses não tem formação secundária ou superior – a média europeia é 17% (Pordata). Também não temos portugueses na lista dos 100 mais influentes da Times (nem Guterres) ou na lista da Forbes dos mais poderosos do mundo. O número de Young Global Leaders escolhidos, ao longo dos últimos 15 anos, pelo Fórum Económico Mundial não enche uma mão. A participação portuguesa em Davos na Suíça, no Future Investment Initiative na Arábia Saudita (que acontece esta semana), na Munich Security Conference, ou em tantos outros eventos globais é nula ou limitada. A heroicidade nacional precisaria de ser atestada pelos nossos pares lá fora, onde a competição é maior e a peneira é mais apertada.
Certamente que estes estudos, relatórios e inquéritos são subjetivos. A notabilidade é um conceito que dificilmente será capturável pela frieza da estatística. Ou talvez o anglo-saxonismo esteja desatento aos nossos talentos lusófonos. Quiçá precisemos de distanciamento temporal para reconhecermos a proeminência. Ou possivelmente uma sociedade avançada seja aquela em que a liderança esteja distribuída por muitos e não concentrada em poucos.
Tudo é possível. Mas como formar novas referências nacionais se os portugueses continuam a emigrar, como uma hemorragia incontível, deixando para trás um país cada vez mais velho? Como ancorar os mais jovens a um país onde 72% deles recebe menos de 950 euros líquidos por mês (dados FFMS) e onde são desconsiderados perante os inúmeros regimes fiscais que favorecem a emigração instamagrável de nómadas digitais estrangeiros? Como incentivar a revitalização de líderes se continuamos a aplicar os mesmos critérios -- o mesmismo, o familiar, o esperado – na escolha de quem ocupa espaços de poder? Como dar alento ao ativismo jovem de rua se o debate público continua adstrito a ciclos eleitorais ou televisivos? Como incentivar o empreendedorismo e a experimentação, se a sociedade premeia o conformismo, a subvenção e a aversão a risco?
E como enfrentar este problema se nem sequer o reconhecemos? No evento com CEOs na Arábia Saudita, o moderador Richard Quest da CNN começou com um axioma “o mundo está uma confusão e vai ficar muito pior”. Mas em Portugal discutimos as escadas rolantes de uma estação de metro da capital ou as eleições presidenciais de um ex-colónia. Cedemos ao facilitismo. Mas quando formos impactados por todas as crises que se aproximam, para quem vamos olhar? Ou quem vamos criticar?
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