Que Reino Unido?
Em declínio económico progressivo, com perda de influência a nível global e em risco de, a prazo, ter de lidar com um “Scotexit”, que Reino Unido conheceremos daqui a uns anos?
Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD
Em declínio económico progressivo, com perda de influência a nível global e em risco de, a prazo, ter de lidar com um “Scotexit”, que Reino Unido conheceremos daqui a uns anos?
Habituámo-nos a ver, no Reino Unido, o exemplo da experiência constitucional mais antiga e mais sólida. E as razões para isso são múltiplas. Porque foi aí que, por via da consagração da “rule of law”, se antecipou o moderno conceito de Estado de Direito. Que se assistiu ao surgimento e progressivo robustecimento da instituição parlamentar. Que se consolidaram realidades democráticas fundamentais, como a representação política, o alargamento do direito de sufrágio ou a centralidade dos partidos políticos.
Julgo que dessa constatação advirá a generalizada surpresa com os acontecimentos recentes que, objectivamente, colocam em causa, não apenas a credibilidade do sistema político, mas até, porventura, a permanência do Estado com a sua actual configuração.
Se, há não muito tempo atrás, perguntassem a qualquer um de nós se considerava possível que um Primeiro-Ministro britânico fosse forçado a pedir a demissão depois de menos de 50 dias no cargo, todos responderíamos tratar-se de uma evidente impossibilidade. Mas, a verdade é que Liz Truss conseguiu esse feito pouco invejável.
O mais grave não é, contudo, isso. É o comportamento que assumiu ao longo desse tão curto período.
Liz Truss foi eleita, na sequência de uma disputada campanha eleitoral interna do Partido Conservador, com um plano económico que assentava em dois pontos fundamentais.
Por um lado, um aumento da despesa, que poderia ir até cerca de 150 biliões de libras no prazo de dois anos, para conter o aumento exponencial dos preços da energia, cujas consequências nos orçamentos familiares têm sido devastadoras (entre Setembro de 2021 e Setembro de 2022 o preço do gás doméstico aumentou ali 96% e o da electricidade doméstica 54%)
Por outro lado, uma diminuição dos impostos, tanto sobre pessoas singulares, como sobre as empresas, que retiraria aos cofres públicos à volta de 30 biliões de libras, com o fito de amortizar os efeitos da espiral inflacionista – que está na ordem dos dois dígitos, sendo a maior entre os países do G7 – e de impulsionar o crescimento económico, que é anémico, prevendo-se, inclusive, que o país entre em recessão em meados do próximo ano.
Como seria expectável, e muitos tinham anunciado, o pânico instalou-se nos mercados, a queda do valor da libra acentuou-se e o banco central teve de intervir.
E que fez Liz Truss? Ao fim de apenas trinta e oito dias, demitiu o Ministro das Finanças, Kwasi Kwarteng e nomeou para o cargo Jeremy Hunt. Nada de anormal, diga-se. Sacrifica-se um ministro, para tentar salvar o chefe do Governo.
Mas o pior estava para vir. Era sabido que o novo titular se opunha à linha económica e financeira anunciada pelo seu antecessor. E, sem surpresa, anunciou um rol de medidas de conteúdo diametralmente oposto às promessas de Liz Truss – menos despesa pública, maior receita. Tudo, como não podia deixar de ser, com o apoio desta.
Qualquer pessoa, excepto a própria, teria compreendido que esta absoluta inversão de marcha de nada serviria e que o seu futuro político estava definitivamente condenado. Mas o seu desesperado apego ao poder tem um significado bem mais pernicioso no plano dos princípios: a desconsideração absoluta do conceito, também dali originário, de responsabilidade política.
Em 1878, Lord Salisbury, igualmente conservador, que foi por três vezes Primeiro-Ministro, ilustrou, numa frase lapidar, o que essa responsabilidade implica: “De tudo quanto é aprovado no Gabinete, cada um dos seus membros que se não demita é absoluta e definitivamente responsável, e não tem o direito de, posteriormente, afirmar que, num caso, deu o seu acordo a um compromisso, enquanto noutro foi persuadido pelos seus colegas”.
Se soubesse ter estado à altura daquilo que a função exige, a Liz Truss não teria restado outro caminho que não fosse o do reconhecimento dos trágicos erros cometidos e a imediata demissão. E daí que a tentativa frustrada de fugir entre os pingos da chuva a torne ainda mais censurável, colocando-a num patamar de indignidade política sem paralelo na história britânica recente.
Reaberta a disputa pela liderança do partido e pelo cargo de Primeiro-Ministro, nova desagradável surpresa: o inefável Boris Johnson, três meses e meio depois de ter anunciado a sua demissão, fruto de uma governação desorientada e de comportamentos éticos reprováveis, interrompeu as suas férias para explorar a possibilidade de um regresso.
É certo que não teve sucesso. Mas o mero intento representou, só por si, nova machadada na ideia de responsabilidade política, cujos efeitos, para ele e para os seus apoiantes, podem pelos vistos ser de curtíssima duração, o que, na prática, significa nada.
No meio disto tudo, o “elefante no meio da sala”, que os conservadores insistem em não querer ver: o “Brexit”, por que tanto lutaram e que é directamente responsável pelas dificuldades que se vêm avolumando. E que, no curto prazo de seis anos, conduziu a uma sucessão de cinco líderes (David Cameron, Theresa May, Boris Johnson, Liz Truss e, agora, Rishi Sunak).
Mas os trabalhistas também não saem bem deste filme. Julgando que as consequências negativas da saída da União Europeia podem contribuir para enfraquecer os conservadores, tacticamente têm vindo a fingir que o problema não existe, recusando a possibilidade de um segundo referendo que possa corrigir os efeitos dramáticos do realizado em 2016. Sem perceber que, quando chegarem ao poder, também eles pagarão o preço de uma situação insustentável.
Em declínio económico progressivo, com perda de influência a nível global e em risco de, a prazo, ter de lidar com um “Scotexit”, que Reino Unido conheceremos daqui a uns anos?
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