O problema do duelo Lula/Bolsonaro é que explora essa fratura cultural e ancestral entre o sul 'europeu' e o norte sertanejo, entre o citadino e o caipira. Em vez de geri-la ou anulá-la, a política brasileira de hoje suga e explora essa fratura histórica. Não desinfeta e sutura essa ferida, não. Corta ainda mais, deixa infetar ainda mais. É uma política de fealdade e doença. Mas o Brasil, diga-se, não está sozinho. Outros países estão nesta trajetória de divisão e desintegração: EUA, Reino Unido, Itália, Espanha
Muitas vezes, as representações políticas são apenas capas visíveis de fenómenos mais profundos. Por exemplo, é difícil não ver no Partido Comunista Chinês um instrumento de opressão da etnia Han sobre todas as outras etnias que compõem a China, uma união forçada de regiões e povos diferentes. No Brasil, é impossível não ver no duelo Lula/Bolsonaro uma espécie de véu moderno do velho ódio que sempre separou o norte agreste dos sertões - o campo caipira - do sul mais ameno e 'europeu' - as cidades mais ricas.
É incrível como a História e a Geografia nos determinam tantas vezes. Quando olhamos para o mapa eleitoral do Brasil de 2022, percebemos que não estamos longe do perfil do Brasil traçado por Euclides da Cunha em 1902: o ódio, a incompreensão e o preconceito entre o sul mais rico e 'europeu', que vota Bolsonaro, e o norte caipira dos sertões, que vota Lula. É como se existissem na verdade dois Brasis que sempre se odiaram, que nunca se reconciliaram e que agora têm uma autorização política para tirar as luvas e levar o país para um cenário que parece de pré guerra civil.
Podem ler ou reler em “Os Sertões”, obra emblemática de Euclides: as duas regiões, norte e sul, “são duas histórias distintas, que se averbam movimentos e tendências opostas; duas sociedades em formação, alheadas por destinos rivais - uma de todo indiferente ao modo de ser da outra”. Euclides é um autor notável, mas tem os seus defeitos. Um deles – que lhe deve merecer cancelamento nas faculdades de esquerda – é o determinismo racial e a profunda injustiça na avaliação que faz dos povos nordestinos.
Se fosse vivo, Euclides seria provavelmente apoiante de Bolsonaro, porque dizia em 1902 aquilo que ainda hoje ouvimos da boca dos bolsonaristas do sul: “ao passo que no sul se debuxavam novas tendências, uma subdivisão maior na atividade, maior vigor no povo mais heterógeno, mais vivaz, mais prático e aventureiro, um vasto movimento progressista, em suma” , que contrastava com o Norte menos “fecundo”, “amorfo”, “imóvel”.
Há aqui uma injustiça de fundo e que até é contraditória com o próprio trabalho de Euclides. Jornalista e escritor, Euclides era um brilhante geógrafo na forma como descrevia o meio natural dos sertões, trazia a literatura para a geografia. E o ponto central dos sertões do norte é o mesmo que pode ser dito sobre o nosso Alentejo: é uma terra dura, ingrata, talvez impossível de domar e humanizar e, nesse sentido, é óbvio que o Sertão do Norte seria sempre mais pobre e parado do que o Sul, cujo clima é muitíssimo mais calmo, ameno, ‘europeu’. Há portanto uma contradição entre o geógrafo Euclides e o antropólogo Euclides. Claro que um alentejano não podia ter a atividade frenética do minhoto, porque não tinha terra e água para essa demanda.
Com ou sem justiça, este choque cultural é uma marca com séculos no Brasil. E o problema do duelo Lula/Bolsonaro é que explora essa fratura cultural e ancestral entre o sul 'europeu' e o norte sertanejo, entre o citadino e o caipira. Em vez de geri-la ou anulá-la, a política brasileira de hoje suga e explora essa fratura histórica. Não desinfeta e sutura essa ferida, não. Corta ainda mais, deixa infetar ainda mais. É uma política de fealdade e doença. Mas o Brasil, diga-se, não está sozinho. Outros países estão nesta trajetória de divisão e desintegração: EUA, Reino Unido, Itália, Espanha.
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