Opinião

A cara do inimigo

A cara do inimigo

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

A humilhação de Hu Jintao e a fuga planeada de milionários chineses são um sinal. O Ocidente é mais inocente sobre a China do que quem a conhece de perto. E isso terá um preço

Hu Jintao não chegou a ver de frente a cara do inimigo. É quando Xi Jinping o ignora que vemos um quase sorriso na boca do actual líder chinês, um ligeiro esgar cínico, e percebemos o que o antecessor terá compreendido que se estava a passar. Talvez o resto do mundo também. Parte, pelo menos.

Os especialistas em política chinesa têm, neste congresso do Partido Comunista Chinês, imensa matéria para dissecar. Mas, para o comum dos mortais que preste apenas moderada atenção à política internacional, aquele momento resume o que aconteceu. Xi Jinping não só se coroou Imperador da China contemporânea, como o fez cortando com o passado, nomeadamente com o passado que tinha no relacionamento económico com o Ocidente um dos eixos centrais. (Dizer que era uma China mais liberal será um uso manifestamente excessivo do termo.) E sem hesitar em esmagar quem fosse remotamente divergente.

O que se sabe do que se passa com os uigures em Xinjiang a imagem da violência contra os manifestantes democráticos em Hong-Kong, ou as recentes notícias de “extradições” forçadas de chineses a viver no estrangeiro, devia ser suficiente para no Ocidente se perceber o que tem de diferente, de errado e de ameaçador, o regime político chinês. Mas o Ocidente – de que se voltou a falar quando se começou a deixar de falar de globalização – tem sido complacente com a China. Entre os que beneficiam com o mercado chinês, os que compram o que a China produz barato, e os que apreciam a entrada de dinheiro vindo da China nas suas empresas e economias, há um conjunto enorme de gente que tem visto na China, no crescimento económico da China, um motivo de satisfação e de progresso próprio. E, com cinismo, oportunismo ou otimismo, um motivo de fé no potencial do comércio para expandir a democracia e reduzir os conflitos.

Enquanto isso, ao longo dos últimos anos a autocrítica ocidental, umas vezes por boas outras por péssimas razões, tem sido imensa. O que tem feito com que o modelo político e económico contestado tem sido o ocidental e o capitalismo. E, com ele, as economias de mercado e as democracias liberais. E isto não é inconsequente.

As Transatlantic Trends, promovidas pelo German Marshall Fund e pela Fundação Bertelsmann, são o resultado de pesquisas realizadas em 14 países da comunidade transatlântica: Canadá, França, Alemanha, Itália, Lituânia, Holanda, Polónia, Portugal, Roménia, Espanha, Suécia, Turquia, Reino Unido e Estados Unidos, e dão uma fotografia útil do que se pensa nestes países sobre temas de segurança, defesa, política internacional e geopolítica. As deste ano, que voltaram a incluir Portugal, têm um alerta: o que se pensa sobre a China. E o que não se pensa.

Aproveitando a terminologia que a União Europeia começou a utilizar há uns anos, quase um terço, 29% para ser exato, acha que a China é um competidor. Mas exatamente outro tanto não sabe o que pensar. Sendo que apenas 18% vê a China como rival, enquanto 25%, um quarto dos inquiridos, olha para Pequim como um parceiro. A conclusão rápida e simples, e não necessariamente simplista, é que a maioria dos inquiridos não vê na China um modelo político alternativo ao nosso que o possa pôr em causa. No máximo, acham sobretudo que é uma questão de competição económica.

E nessa linha, detalhando os resultados, em Portugal a maioria, 44%, acha que a China é um parceiro (um número que aumenta conforme diminui a idade dos inquiridos). Não é. Mas considerando que tem sido olhada, sobretudo, como um investidor, e tendo em conta que a memória de haver um modelo político alternativo e rival se vai esbatendo (1989 foi há mais de 30 anos), não admira que tantos pensem assim.

Há, no entanto, um bom sinal: quando se fala de direitos humanos, a maioria, incluindo em Portugal e de forma inequívoca, entende que se deve ser mais duro com a China. E a maioria, nos países inquiridos e especificamente em Portugal, considera que se deve ser mais duro com a China mesmo que isso possa ter impactos económicos. Ainda que, de novo, esta opinião seja mais vincada nos mais velhos do que nos mais novos.

Tudo isto é mais importante no momento que estamos a passar. O mundo em que vivemos já não é o que era, o da globalização generalizada, mais ainda não é o que vai ser (provavelmente um mundo de blocos políticos e económicos antagónicos). É um território desconhecido, de transição, onde fará falta recordar o valor que tem o modelo que temos. E como é diferente o outro.

Nos dias seguintes ao Congresso do Partido Comunista Chinês, o Financial Times contava que há milionários chineses a preparar-se para sair da China. Não são dissidentes, democratas assustados, ou liberais perseguidos que necessitam de proteção internacional, mas podem ser o canário na mina. Quem avisa que a mudança no regime chinês terá consequências.

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