Em outubro de 2015 (lembram-se?) um António Costa com ar derrotado dava os parabéns a Passos Coelho por ter ganho as eleições, afirmava a sua permanência na oposição e preparava-se para uma “noite de facas longas” que provavelmente ditaria o seu afastamento da liderança do PS.
Porém, poucos minutos depois, Jerónimo de Sousa, baseado na perda da maioria absoluta pela coligação PSD/CDS, afirmava que o PS só não formaria Governo se não quisesse. Com essa afirmação, abriu-se uma nova fase da vida política nacional.
As circunstâncias em que o PS formou Governo em 2015 obrigaram-no a adotar medidas que não lhe passavam pela cabeça e o PCP teve aí um papel decisivo. Ao contrário do que a direita afirmava, a análise comum das propostas de Orçamento do Estado entre 2015 e 2021 não eram encenações. O PS nunca recebeu cheques em branco e isso teve consequências concretas que se traduziram na melhoria das condições de vida de muitos milhares de portugueses que, atribuindo ao PS os méritos dessas melhorias, lhe deram uma tão almejada maioria absoluta que começa a fazer toda a diferença, para pior.
Em 2016 celebrava-se o virar da página da austeridade. Depois de muitos anos de empobrecimento, primeiro com Sócrates e depois com os longos anos de Passos Coelho/Paulo Portas, os portugueses que viviam do seu trabalho ou das suas pensões sentiram um alívio considerável nas suas condições de vida.
Só nos dois primeiros anos, entre 2015 e 2017, os Orçamentos do Estado consagraram o regresso das 35 horas de trabalho semanal na Administração Pública, a reposição dos quatro feriados que tinham sido abolidos, a eliminação dos cortes nos salários da Administração Pública, o aumento extraordinário anual nas pensões mais baixas, a eliminação do enorme aumento de impostos que foi a sobretaxa no IRS, a reposição da taxa de IVA a 13% na restauração, a manutenção da propriedade e controlo público da Carris, Metro e STCP, a valorização de prestações sociais, o aumento do salário mínimo nacional, o alargamento do abono de família, o congelamento do valor das custas judiciais, a eliminação progressiva do pagamento especial por conta, a gratuitidade dos manuais escolares para a escolaridade obrigatória, a redução do valor das propinas no ensino superior público, entre muitas dezenas de propostas que contribuíram para uma sensível reposição de direitos e rendimentos que a maioria dos portugueses havia perdido nos anos anteriores.
Os anos posteriores a 2015 permitiram demonstrar que a recuperação da economia portuguesa não se fazia com políticas de austeridade, ditadas pela troika ou impostas para além da troika. Com a valorização do poder de compra de largas centenas de milhares de portugueses a economia cresceu e o nosso país iniciou um ciclo de franca recuperação. A tese de Luís Montenegro de que com a governação PSD/CDS os portugueses estavam pior, mas o país estava melhor, foi cabalmente desmentida. O país só está melhor se os portugueses estiverem melhor.
Como agora se demonstra, o PS foi o grande beneficiário eleitoral de méritos que não eram seus.
Em 2021, sabendo da possibilidade de obter a maioria absoluta se criasse uma crise política e pudesse atribuir as responsabilidades por isso aos partidos à sua esquerda, António Costa não hesitou. Sabia que a proposta de Orçamento do Estado para 2022 era inaceitável para os partidos à sua esquerda, mas fez toda uma campanha de mistificação chamando-lhe o “orçamento mais à esquerda de sempre”. Sabe-se e sente-se hoje que não era assim, mas o sucesso eleitoral foi conseguido.
Agora, não é por acaso que para além dos governantes e deputados do PS, os maiores apoiantes do Orçamento para 2023 sejam os dirigentes das associações patronais. Ao contrário da generalidade da população que vê com apreensão a perspetiva de redução dos salários reais e do poder de compra, é visível e audível o contentamento do patronato com a proposta do Governo.
Se nos lembrarmos do discurso de violenta hostilidade dos dirigentes das associações patronais contra o que consideravam os Orçamentos capturados pela extrema-esquerda a partir de 2016, e olharmos agora para a simpatia que os mesmos manifestam a respeito do Orçamento para 2023, facilmente verificamos que tal mudança de atitude não pode deixar de assentar numa mudança profunda do sentido geral dos Orçamentos em causa.
Se em 2015 se virou uma página no sentido da reposição de direitos e rendimentos de muitos milhares de trabalhadores e reformados, assistimos em 2022 a um virar de página de sentido contrário, que resulta evidente não apenas do discurso das contas certas, a fazer lembrar Passos Coelho, mas sobretudo da sua tradução concreta em medidas constantes da proposta de Orçamento.
Na verdade, este Orçamento é marcado decisivamente pela desvalorização do valor real dos salários, das carreiras e profissões na administração pública; pelo corte na atualização das pensões e reformas que está previsto na lei, impondo a perda de poder de compra; pela possibilidade dada aos grupos económicos de reduzirem drasticamente (ou mesmo anularem) os impostos que têm obrigação de pagar, utilizando sem limite temporal o reporte de prejuízos fiscais, entre outros favorecimentos fiscais; pelo alargamento do financiamento pelo Orçamento do Estado aos grupos privados da doença, designadamente com mais de 9 mil e 700 milhões de euros para aquisição de serviços de saúde pelo Ministério da Saúde, aumentando estas verbas em cerca de mil e 700 milhões de euros em dois anos; pela recusa da contratação de trabalhadores para os serviços públicos, com destaque para o SNS e a Escola Pública, pela opção pela precariedade laboral e pelo recurso à externalização de serviços e às horas extraordinárias; pela manutenção de níveis baixos de investimento público face ao que seria necessário para relançar a economia e melhorar os serviços públicos, deixando para o PRR o essencial do investimento; pela recusa de atualização dos limites dos escalões do IRS à taxa da inflação que se verificou em 2022; pela recusa do combate à especulação com os preços como a que se verifica nomeadamente na energia e na grande distribuição, optando pela mobilização de recursos públicos que asseguram e dão suporte aos lucros extraordinários dessas empresas.
As diferenças entre os avanços verificados entre 2016 e 2021 e os retrocessos que se prefiguram no horizonte mais próximo revelam com muita clareza a justeza das preocupações que foram atempadamente manifestadas quanto à possibilidade da obtenção pelo PS de uma maioria absoluta. É que, livre de constrangimentos, o PS pode agora mostrar a sua verdadeira face e está a fazê-lo. O Orçamento do Estado para 2022 não era o mais à esquerda de sempre e o Orçamento do Estado para 2023 é certamente o mais à direita desde 2015.
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