Opinião

A política portuguesa está repleta de janelas partidas. E de incompatibilidades

A Lei das incompatibilidades serviu primeiro para exibir excesso de escrúpulo, para acabar a exibir falta de vergonha. Uma coisa é certa, se não repararmos as janelas vamos acabar constipados

Não faltam na política portuguesa casas com janelas partidas. Zelosos zeladores substituiriam rapidamente as janelas partidas por janelas novas. Mas, por paradoxal que possa parecer, quanto mais janelas partidas há num bairro, menos janelas serão reparadas e mais janelas serão partidas.

O título não engana e a introdução também não. Leitores mais atentos saberão que estou a falar da teoria da janela partida de James Q. Wilson e George Kelling. A tese é simples, mas poderosa: se uma janela for partida e não for imediatamente reparada, a tendência é que outras janelas sejam partidas e o edifício se degrade. E depois o bairro. E depois a polis.

Vem isto a propósito de uma Lei - a das incompatibilidades - a que todos foram, apontando o dedo ao outro, e da qual todos fogem, quando o dedo se lhes aponta a eles. Uma espécie de janela feita para apedrejar. Já lá vou.

Voltemos às janelas partidas. Temo-las em diversos edifícios da polis. Exemplos? Vamos ao edifício do "debate político": "Não roubes, os bancos não gostam da concorrência". Lia-se isto num cartaz de um partido populista de esquerda, há uns anos. Lançando opróbrio sobre todo o sector financeiro, apresentava-se uma mundivisão simplista (ou deverei dizer simplória?), que é aquilo que os populistas têm para oferecer. Nesta linha, seguiram, sempre cantando e rindo, com o mote "a troika manda roubar ao povo para dar aos banqueiros". E culminaram com um mural onde o Primeiro-ministro português de então, Pedro Passos Coelho, aparecia agachado a beijar o traseiro de Angela Merkel, com a frase: "este beijo deixa-nos tesos".

Querem uma degradação maior do debate? Estes todos, todas e todes, num ultrajante cartaz de Natal anunciaram - num roast, como agora se diz, ao respeito pelas convicções religiosas privadas - que "Jesus também tinha dois pais". E se acham que estas foram as únicas janelas partidas por estes arruaceiros, esquecem-se que, no que qualquer Lei sobre discursos de ódio classificaria como mensagem pelo menos ofensiva, encomendaram a morte a um Chefe de Estado estrangeiro, numa cantilena qualquer em que invocavam também Santo António e Salazar.

Mas os zeladores não se importaram. Fizeram-se até BFFs do gang, quiçá ao som dos Tara Perdida, cantarolando desafinados: "fizeram-se amigos, tentaram de tudo fazer, tudo é melhor quando tens poder." E de pedras nos bolsos, seguiram apedrejando outras janelas de outros edifícios.

No Parlamento, a casa da democracia, à boleia de outro canhoto, acabaram com os debates quinzenais, e agora recusam audições aos ministros. Nas Entidades Reguladoras, demitiram os inconvenientes primeiro, para as partidarizarem depois. Na Administração Pública, instrumentalizaram a CRESAP, fazendo da excepção a regra, e desinvestiram no seu funcionamento e futuro, como regra e não como excepção.

Infelizmente, neste bairro, não faltam exemplos. Mas voltemos à Lei das Incompatibilidades. Há uns meses, aqui no Expresso, escrevi dois artigos - Dura Lex Sed Lex, Sic Infirma Est e Não, não quero mais fiscais, só quero os necessários; e menos coisas para fiscalizar - sobre o efeito altamente nocivo de uma produção legislativa prolixa e de uma insuficiente (ou inexistente) aplicação da mesma. Em síntese: um Estado que legisla sem ser capaz, ou sem ter vontade, de fazer cumprir o que legisla é um Estado que desiste da sua função principal, e é um Estado em trágica falência de autoridade.

Poupo o estimado leitor ao juridiquês. Basicamente, o que a Lei em causa diz é que, qualquer governante que seja proprietário de 10% de uma empresa, ou cujo cônjuge, pai, mãe ou filhos cumpram o mesmo requisito, tem a empresa impedida de fazer contratos com o Estado. E diz mais: caso isso se verifique, o contrato celebrado é nulo e o governante, a menos que seja o Primeiro-ministro, tem como sanção a demissão.

Há neste(s) episódio(s) duas coisas a ter em conta: a primeira, é que cada dia que passa sem demissões dos ministros em falta e sem a declaração de nulidade dos contratos em causa é mais um dia de ghettização da polis; a segunda, é que, como Fitzjames Stephen, essa velha carcaça conservadora, dizia, há que aprender a legislar com parcimónia.

Por cá, no momento de exibição de virtudes, todos querem ser mais papistas do que o Papa, mas no momento de arcarem com as consequências desse moralismo, são demasiados os que assobiam para o lado. Neste caso, aLei das incompatibilidades serviu primeiro para exibir excesso de escrúpulo, para acabar a exibir falta de vergonha.

Uma coisa é certa, se não repararmos as janelas vamos acabar constipados.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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