O tema das incompatibilidades de titulares políticos é sintomático do relacionamento algo difícil que António Costa tem mantido com a interpretação da Constituição
Adianto já que a solução legislativa que, na pendência da Lei 64/93, e da atual Lei 52/2019, impede as empresas em que os titulares de cargos políticos tenham, conjuntamente com familiares próximos, participações em percentagem superior a 10% do capital social, de participar em procedimentos de contratação pública, mesmo que decorram em áreas não tuteladas por aqueles, me parece desproporcionada.
Mais do que uma eventual afetação da liberdade de iniciativa económica dos familiares de políticos, esta solução legislativa atinge de modo excessivo a liberdade de participação política e o direito de acesso a cargos públicos, uma vez que um regime de incompatibilidades tão amplo, e que tem como sanção para o seu incumprimento a demissão, constitui um poderoso desincentivo ao exercício de funções públicas. Mas não foi sobre esta solução legal que o Conselho Consultivo emitiu o seu parecer. Já lá vamos.
Tendo os problemas vindo a público em 2019, o que levou o Governo a dirigir as suas dúvidas de constitucionalidade ao Conselho Consultivo da PGR? Este pedido não é um meio idóneo para obter respaldo para a decisão de aplicar a lei apenas parcialmente, desaplicando o conteúdo que se considera inconstitucional. Esta é uma questão técnica, mas com efeitos políticos muito relevantes para o desenrolar da situação, cujas consequências rebentam agora nas mãos do Ministro Pedro Nuno Santos.
O Governo está vinculado, por força da Constituição, à aplicação da lei, por força do princípio da legalidade. Está vinculado, também, a respeitar os direitos, liberdades e garantias. Por isso, nesta situação concreta, subsistia um dilema: dividido entre a obediência à lei parlamentar, e a sua leitura da inconstitucionalidade da mesma, por violação de direitos, liberdades e garantias, ficou num impasse.
Contudo, os pareceres da PGR não servem para resolver impasses destes, e foi aqui que residiu o erro estratégico do Governo.
O parecer sugeriu uma interpretação restritiva do artigo 8.º, n.º 2, alínea a), da Lei 64/93: este preceito alargava os impedimentos à contratação pública a todas as empresas pertencentes a familiares próximos do titular de cargo político, não exigindo que este tivesse participação social na mesma. Daí a ênfase das conclusões do Conselho na restrição da liberdade de iniciativa privada dos familiares. Note-se que tal solução legal não foi transposta para a atual Lei 52/2019, e já não se encontra em vigor.
Tal interpretação restritiva traduzia-se, na prática, na desaplicação do conteúdo do artigo 8.º, n.º 2, alínea a), que o Conselho Consultivo tinha por inconstitucional: alargar a incompatibilidade aos processos de contratação pública que não correm nas áreas tuteladas pelo titular do cargo político. Essa parte do preceito, seria, por conseguinte, desaplicada por se entender que o seu conteúdo é inconstitucional. Só que o Governo, ao homologar o parecer, e vincular a Administração a este entendimento, está, na verdade, a desaplicar parcialmente uma norma legal: e a incumprir o princípio constitucional da obediência à lei.
É por isso que o recurso ao Conselho Consultivo foi o caminho errado. E é por isso, também, que o Conselho Consultivo errou ao não alertar o Governo para esta importantíssima questão subjacente ao princípio da separação de poderes, e ao sugerir uma desaplicação da lei sem recurso prévio ao Tribunal Constitucional.
O Primeiro-Ministro deveria ter requerido a fiscalização abstrata da constitucionalidade da Lei 64/93 – é o Primeiro-Ministro, e não o Governo, que tem essa legitimidade. O Tribunal Constitucional é a única autoridade com o poder de realizar interpretações definitivas sobre a Constituição. Os pareceres do Conselho Consultivo da PGR não têm essa autoridade, homologados ou não.
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