Opinião

Paz? Que paz?

Paz? Que paz?

José Matos Correia

Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD

É necessário trabalhar para fazer a paz, encontrando caminhos para uma solução negociada do conflito. Mas que paz? Como deve ser alcançada? Em que termos e condições?

Nos últimos dias, temos vindo a assistir a um agravamento significativo da situação na Ucrânia. Desde logo, no que toca às acções militares levadas a cabo pela Rússia. Mas também em matéria de escalada verbal, com a ameaça reiterada de recurso ao uso de armas nucleares, quer pelo próprio Putin, quer pelos seus esbirros.

Ora, à medida que a preocupação com este estado de coisas compreensivelmente aumenta, somos cada vez mais confrontados com opiniões, supostamente independentes, que, de uma forma mais aberta, ou mais velada, criticam a postura dos Estados Unidos, da União Europeia e da NATO, a quem imputam uma atitude de promoção da guerra. Ao invés disso, dizem, é necessário trabalhar para fazer a paz, encontrando caminhos para uma solução negociada do conflito. Mas, a pergunta que imediatamente deve ser colocada é: que paz? Como deve ser alcançada? Em que termos e condições?

Na resposta a essas questões centrais, creio que vale a pena começar por recordar alguns factos básicos, que aquelas opiniões parecem esquecer.

Facto 1 – a Rússia invadiu, de forma deliberada e não provocada, um Estado soberano, membro das Nações Unidas. E, ao fazê-lo, violou grosseiramente a Carta da Organização e, em particular, dois princípios fundamentais nela contidos: o da resolução pacífica dos conflitos (se conflito houvesse à época da invasão e, manifestamente, não havia) e o da proibição do recurso à força nas relações internacionais.

Facto 2 – a Rússia insiste em que não lançou qualquer guerra contra a Ucrânia, mas apenas tem em curso uma “operação militar especial”. Sucede que, como está bem de ver, o que interessa não são os nomes, mas a realidade material das coisas. Guerra é, por definição, um conflito armado entre Estados. E os termos eufemísticos a que se recorra não mudam, em nada, essa realidade.

Facto 3 – a Rússia justificou a sua actuação com a necessidade de desmilitarização e desnazificação da Ucrânia. Ora, a definição do estatuto de cada Estado (neutral ou não neutral) é um direito que só ao próprio assiste, em obediência a outro princípio acolhido na Carta: o da igualdade soberana dos Estados. E, quanto à questão da desnazificação, o ridículo da argumentação é tal que daria vontade de rir a bandeiras despregadas, não fora as consequências devastadoras que diariamente testemunhamos.

Facto 4 – a Rússia adoptou, sistematicamente, uma estratégia de terror, não limitando a sua actuação aos alvos militares, mas antes enveredando pelo ataque indiscriminado contra populações e instalações civis. Transcrevo, a este propósito, o artigo 38.º do Protocolo de 1977 relativo à protecção das vítimas de conflitos armados internacionais, adicional às Convenções de Genebra de 1949: “Com vista a assegurar o respeito e a protecção da população civil e dos bens de carácter civil, as Partes em conflito devem sempre fazer a distinção entre população civil e combatentes, assim como entre bens de carácter civil e objectivos militares, devendo, portanto, dirigir as suas operações unicamente contra objectivos militares”. Alguma dúvida de que a Rússia infringe todos os dias essa obrigação e que em causa está a manifesta prática de crimes de guerra?

Facto 5 – a Rússia, na sequência de pseudo-referendos, anunciou a anexação formal das regiões de Lugansk, Donetsk, Zaporizhia e Kherson. Outra violação da Carta da ONU, que proíbe qualquer acção visando por em causa a integridade territorial dos Estados.

A lista dos desmandos da Rússia poderia continuar, porque ela é infindável. Mas as referências que aqui deixei caracterizam de forma mais do que suficiente, a meu ver, a soberba com que se comporta, a indiferença que revela face ao drama que gerou, o seu total desprezo pelos deveres internacionais a que está adstrita.

É neste quadro que regresso às perguntas que deixei acerca da paz. Porque se a paz é necessária e deve ser buscada por meio de negociações políticas, há que definir balizas e objectivos. Porque paz não pode confundir-se com o benefício do infractor, nem pode traduzir-se na mera rendição do agredido.

Dito de outra forma: em causa não pode estar uma reedição, adaptada, da “pax” soviética, em que a Ucrânia viesse a ser nominalmente independente, mas se transformasse numa espécie de Estado satélite, só podendo agir dentro do espaço de autonomia limitada que a Rússia lhe concedesse, à imagem daquilo que a URSS fazia com os países membros do Pacto de Varsóvia.

A aceitação de um “status quo” desse tipo seria duplamente desastrosa. Por um lado, na medida em que poria em causa os alicerces fundamentais em que a ordem internacional se baseia. Por outro, porque abriria o caminho para que, reforçado pelo seu sucesso na Ucrânia, Putin se sentisse autorizado a alargar a sua ambição a outros Estados vizinhos, mais próximos ou, até, menos próximos.

Os contornos da presente situação estão, todos o sabemos, bem delimitados: de um lado, a Rússia e os seus (muito poucos) apoiantes; do outro, a Ucrânia e os seus (muitos) aliados. E, ao contrário do que está subjacente às opiniões “independentes” a que aludi no início do presente texto, não é a este lado que cabe tergiversar ou fazer cedências, que, neste momento, só transmitiriam uma posição de debilidade e de receio.

Mas como abrir, então, os caminhos para a paz?

A guerra na Ucrânia não é uma guerra mundial. Mas é, inequivocamente, uma guerra com incidência mundial, pelas consequências que arrasta nos mais diversos planos: económico, humanitário e geopolítico. E pode mesmo mundializar-se, se a utilização de armas nucleares (mesmo que tácticas) se concretizar.

Extremadas as posições das partes directa ou indirectamente envolvidas, o impasse só poderá eventualmente ser ultrapassado, como a história nos ensina, com a intervenção construtiva de terceiros (chamemos-lhes mediadores, conciliadores ou outra coisa qualquer).

Não será tempo, por isso, de potências com ambições globais, que até agora têm tentado fugir entre os pingos da chuva, perceberem que, se as coisas continuarem a agravar-se, também elas têm muito a perder?

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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