Há um ponto prévio que temos de abordar e que diz respeito à aplicação concreta da velha máxima segundo a qual “à mulher de César não basta ser séria, tem de parecer”. Na interpretação unânime desta frase até à data, a que chamarei visão clássica, "César" simbolizava o poder e “mulher” referia-se a quem exerce esse poder ou tem relação de proximidade com ele.
Todavia, mais de dois mil anos depois de Júlio César ter proferido tais palavras para justificar a decisão de divorciar-se da sua segunda mulher, Pompeia Sula, Ana Abrunhosa veio, no Público, protagonizar uma revolução coperniciana nesta matéria. De acordo com a interpretação clássica, a ministra da Coesão Territorial deveria ser “César” (é o poder) e o marido (está próximo do poder) deveria ser a “mulher”. Só que no artigo que assinou há uma semana Ana Abrunhosa afirma que a "mulher" (ela) de "César" (o marido) é séria.
Vejamos mais duas situações para que se possa perceber bem o que está em causa. Segundo a visão clássica, Pedro Nuno Santos, também ele visado por uma situação de incompatibilidade nos últimos dias, seria “César” (tem o poder) e o seu pai, sócio da empresa de ambos, a “mulher”. Ao contrário, segundo a doutrina Abrunhosa, o pai de Pedro Nuno Santos seria “César” e o ministro das Infraestruturas e da Habitação seria a “mulher”.
E, no caso da eventual incompatibilidade de Manuel Pizarro pelo facto de a mulher ser bastonária da Ordem dos Nutricionistas, também teríamos resultados diferentes. Segundo a interpretação clássica, o ministro da Saúde seria “César” e a sua mulher seria a “mulher”. Todavia, aplicando a doutrina Abrunhosa, Pizarro seria a “mulher” e a mulher seria “César”.
A tensão entre a visão clássica e a doutrina Abrunhosa é evidente e não andaremos longe da verdade se afirmarmos que, se esta última prevalecer, o nosso mundo já não será exatamente o mesmo. Em todo o caso, esclarecidos os aspetos essenciais das duas linhas de interpretação que se confrontam no que diz respeito a quem deve estar na posição de "César" e quem deve ocupar o da sua "mulher", importa passar à análise do entendimento socialista sobre incompatibilidades.
Um primeiro sinal foi dado a propósito de Ana Abrunhosa e dos fundos europeus que a empresa do marido recebeu. Tínhamos ali uma questão ética, mas não uma situação ilegal. E foi o próprio António Costa quem afirmou, no Parlamento, que não havia qualquer caso porque não tinha sido violada a lei.
Perante esta posição, poderia pensar-se que, se viéssemos a tropeçar numa situação de violação de lei, teríamos caso. Foi então que apareceu a situação de Manuel Pizarro e da sociedade de que manteve a gerência, circunstância que implicava clara ilegalidade. Contudo, de acordo com a interpretação socialista, também aí não houve caso. Talvez porque não estivesse em causa uma questão ética. Seja como for, conjugando a posição defendida sobre os ministros Ana Abrunhosa e Manuel Pizarro, poderíamos ser levados a pensar que teríamos caso, aí sim, se viesse a detetar-se uma situação que levantasse dúvidas éticas e legais.
Foi nesse momento que apareceu a situação de Pedro Nuno Santos. E ficámos a saber que, mesmo quando se combinam questões éticas e legais, também não há caso porque existe um parecer bastante conveniente do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (que contou com o voto da atual ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro). Mesmo se, como é o caso, o parecer for anterior à entrada em vigor da lei e disser respeito a situações que não são aquela em que Pedro Nuno Santos se encontra.
No fundo, de acordo com o entendimento do PS, a mulher de César já nem sequer tem de parecer séria. Tem, tão somente, de apresentar um parecer. Um parecer qualquer que possa lançar confusão sobre o que a lei exige à mulher de César. Isto, claro, se aplicarmos a doutrina Abrunhosa segundo a qual, como vimos, Pedro Nuno Santos é a “mulher” e o seu pai é “César”.
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