Opinião

A Europa é quando um homem quiser. Ou precisar

A Europa é quando um homem quiser. Ou precisar

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

De cada vez que há uma nova aflição, aumenta o pedido para que a reposta seja europeia. Quem precisa, pede sempre mais Europa. E aceita as consequências. Em tempo de crises sucessivas, a importância da Europa continuará a ser crescente. Pelo menos internamente

Quando, há dias, o governo alemão anunciou que podia gastar 200 mil milhões de euros a proteger os cidadãos e as indústrias alemãs do aumento do custo da energia, o resto da Europa, e sobretudo Itália e França, protestaram. Por várias razões, não necessariamente com toda a razão.

Para se ter uma ideia da dimensão do que está em causa, o Plano de Recuperação e Resiliência português, “a bazuca”, vale 16,6 mil milhões. Ou seja, os alemães têm 12 vezes o plano de recuperação de Portugal para responder ao aumento do preço das energias. A Alemanha faz isto, ou admite fazer, porque pode. A Itália e França protestam porque não podem fazê-lo.

Assim que a iniciativa alemã foi conhecida, os comissários Thierry Breton e Paolo Gentiloni assinaram um artigo de opinião conjunto a criticá-la, sem a mencionar especificamente. Apesar de ser suposto não representarem os seus países, a falta de pudor dos comissários europeus tem uma explicação óbvia. Breton e Gentiloni falam pelos interesses francês e italiano, as duas maiores potências industriais europeias depois da Alemanha. E muito menos ricas e mais endividadas que os alemães.

O primeiro problema que isto levanta é exatamente esse: competição. Se a Alemanha protege cidadãos e indústrias (o problema é sobretudo com as indústrias) do aumento dos custos da energia, as empresas alemãs terão custos de produção inferiores às italianas e francesas, e isso aumenta-lhes a competitividade. Ainda por cima em tempo de crise. Lá se vai o mercado interno e a concorrência leal em condições equitativas entre europeus. Mas foi exatamente isso que a suspensão das regras de auxílios de Estado veio permitir, a pretexto de apoiar empresas e cidadãos durante a pandemia. Agora vê-se que as regras da concorrência têm uma razão de ser.

Mas há, obviamente, o reverso. Tente-se explicar aos eleitores alemães que o seu governo pode ajudá-los, mas a União Europeia (UE) não deixa. E não deixa porque outros países, menos ricos (menos bem governados, dirão os alemães), não conseguem fazer o mesmo.

Para agravar a situação, as circunstâncias em que este debate acontece não ajudam. Os alemães têm manifestamente responsabilidade no impacto que a guerra tem nos custos da energia, precisamente por dependerem tanto da Rússia; proteger os cidadãos e empresas do aumento do custo da energia não é um incentivo à redução do consumo, que é a estratégia principal da Europa; e tudo isto acontece quando vários Estados membros da UE estavam a pedir à Comissão Europeia que considerasse maneiras de impor um teto ao preço do gás, ao que a Comissão respondeu, depois de muito pensar, que o melhor era não fazer isso (exatamente o mesmo que os alemães diziam e preferiam antes de anunciarem que resolveriam o problema subsidiando os seus consumidores).

Entretanto, as discussões continuam, muito por causa da irritação de França e Itália, mas não só, e fala-se em respostas europeias: alguma coisa na linha do teto ao preço do gás, mas circunscrito; e talvez possa haver dívida conjunta, que pode depois ser emprestada aos Estados membros que precisem (e, detalhe nada irrelevante, que se possam endividar sem criarem um problema ainda maior para si próprios). Exatamente na linha do tipo de soluções que Itália e França (e Gentiloni e Breton) têm pedido. Seja como for, a pior solução seria, de facto, o salve-se quem puder.

Tudo isto conta duas histórias, nenhuma completamente nova. Em primeiro lugar, conta que a Alemanha tem mais dinheiro e poder que os restantes Estados membros. E parece ter muita capacidade para influenciar o topo da Comissão Europeia, que calha ser presidida por uma alemã. Além disso, mostra que há cada vez mais temas europeus e mais estados a quererem respostas europeias, quando precisam. E isso, não sendo novo, vai acontecendo cada vez mais.

Durante anos, a Europa tinha dois ou três principais objetivos: criar um grande mercado interno para pessoas, bens e serviços; tentar aproximar o nível de vida entre os europeus; e, para alguns, ser um actor político interna e externamente. (E a paz, claro.)

Atualmente, o mercado interno é mais pretexto do que objetivo. A necessidade de reagir à pandemia e aos seus efeitos económicos pediu escala europeia. Passou a falar-se de união da Saúde e de dívida conjunta, um salto muito significativo. Agora, perante guerra, também se diz que se precisa de mais Europa. De maior responsabilidade dos europeus pela sua segurança e defesa (sem afastar os americanos e a NATO), e de ter uma reação comum e solidária, das sanções à resposta ao aumento do preço da energia.

Olhando um pouco para trás, no tempo da crise das dívidas soberanas também já foi um pouco assim. Apesar da Troika não ser apenas europeia, foi a Comissão Europeia que teve um papel fundamental na imposição de políticas alinhadas com as prioridades europeias, primeiro, e foi Bruxelas que ganhou responsabilidades na avaliação dos orçamentos e das reformas nacionais dos países intervencionados, depois da Troika.

Olhando um pouco para a frente, é certo que em algum momento terá de ser a Europa (o BCE, de novo) a ajudar os Estados membros onde o aumento das taxas de juro para combater a inflação vai ter consequências mais graves (os que têm mais dívida, pública ou privada).

O que tudo isto nos diz é que a tendência para haver cada vez mais Europa, mais decisões a serem tomadas à escala europeia, é crescente. O que nos vai empurrando para alguma espécie de federalização, chame-se-lhe o que se chamar. A menos que os Estados imponham soluções que passem mais pela coordenação ente si do que pela definição europeia de políticas. E mesmo assim...

O curioso, ou nem por isso, é que não são sempre os mesmos a pedir mais Europa, mas é frequente que o façam por razões semelhantes. Por oportunidade ou necessidade.

Na década de 90 do século passado, o centro e norte queria mais Europa para derrubar barreiras ao comércio interno. Com cinismo (e exagero), dir-se-á que os alemães queriam vender aos restantes. Em contrapartida, os menos ricos recebiam solidariedade.

Agora, os que querem mais Europa, querem-na porque precisam de solidariedade (a começar por França e Itália). E estão inevitavelmente dispostos a abdicar de algum poder e autonomia. Sendo que os franceses acham que isso não lhes retira soberania, porque imaginam o poder da Europa como uma extensão do seu poder.

Não é provável, por agora, que o processo em curso volte atrás. O que significa que é melhor não tirar os olhos do que se decide em Bruxelas (e em que participamos). Mas também convém lembrar que o bom rating da dívida da UE não dura para sempre. Sobretudo se cada governo o puser em perigo. E isso tem uma forma de se resolver: com mais Europa.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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