Brasil e o passado imprevisível
Lula, cuja vitória na segunda volta é a esperança para que a democracia política sobreviva, está numa camisa de forças. O futuro do Brasil mostra-se tão dramaticamente imprevisível como as ameaças do passado.
Lula, cuja vitória na segunda volta é a esperança para que a democracia política sobreviva, está numa camisa de forças. O futuro do Brasil mostra-se tão dramaticamente imprevisível como as ameaças do passado.
“O passado é muito imprevisível”. A frase, brilhante e perturbadora, é da historiadora norte-americana Kristin Ross, num ensaio de 2020, no qual acrescentava o seguinte: “O passado não é didático: a sua relação com o presente não é uma relação pedagógica, não é nem estável nem fixa.” Esta reflexão não me sai da cabeça a propósito da situação brasileira. Qualquer visão etapista da história colapsa perante a vaga neofascista do século XXI. O racismo, a negação dos direitos humanos, o classismo mais violento, a apologia da violência contra a diversidade estão aí e consolidam um campo com raízes fortes.
Bolsonaro entusiasma Ventura e neutraliza, também em Portugal, outros setores de direita. Uma mulher como Cecília Meireles declarava na televisão, há dias, que não faria nenhuma escolha caso estivesse no Brasil. Montenegro, que alimenta um crescente namoro com o Chega, terá provavelmente a mesma posição. Ora, essa neutralidade de uma direita que não se reivindica do fascismo faz a força da extrema-direita, no Brasil como noutros países. Ela explica também o desaparecimento eleitoral da direita dos “democratas liberais” e a sua substituição pelo campo fascista na representação popular.
É bom lembrar, Bolsonaro é um apologista confesso da ditadura militar, dos seus assassinatos e da tortura, sendo múltiplas as declarações nesse sentido e simbólico o elogio ao torturador de Dilma na votação do impeachment. Ataca a separação de poderes e o Supremo Tribunal Federal se este não alinha pelo seu diapasão. Promoveu de forma desabrida a destruição da Amazónia, o que constitui uma tragédia para o mundo inteiro. Instiga a violência política contra os seus adversários - vários apoiantes de Lula foram assassinados nos últimos meses por bolsonaristas, em jantares, festas de família ou na rua. Defende abertamente a desigualdade entre mulheres e homens, a discriminação das minorias sexuais, o ataque às populações indígenas, o negacionismo científico e climático.
As 600 mil mortes registadas na pandemia têm sido classificadas por muitos como um genocídio que é em grande medida um efeito das suas políticas. Bolsonaro advoga a ausência de fronteiras entre política e confessionalismo religioso, cultivando uma relação de concubinato com o fundamentalismo evangélico. Ao mesmo tempo que brada contra a “corrupção”, é o exemplo acabado de um político corrupto: comprou 51 imóveis com dinheiro vivo nos últimos anos, desde que entrou para a política, no valor de mais de 5 milhões de euros. E, para gáudio de algumas elites económicas saudosas do escravismo, executa um recuo do Estado em todas as suas funções sociais, estando filiado no “Partido Liberal”, sublinhado por essa via o seu compromisso com o capitalismo extrativista e de acumulação sem regras, o qual conviveu vibrantemente, em tantos momentos históricos, com soluções políticas autoritárias.
Nas próximas semanas, será cavalgada por Bolsonaro a disparidade entre as sondagens e os resultados da primeira volta nas eleições brasileiras. Não lhe restando espaço para continuar a campanha contra o voto em urna eletrónica, como ensaiou, usará a seu favor o hiato entre o peso eleitoral que teve e as previsões publicadas. De resto, como tem sido abundantemente assinalado, a extrema-direita brasileira já teve uma vitória: a eleição de vários senadores e congressistas garante-lhe um peso significativo no próximo ciclo político e condições de reprodução da sua influência política e social, mesmo que Bolsonaro perca, como é provável, as eleições para presidente. A esta influência institucional soma-se uma força social organizada, com as suas bolhas comunicacionais, a sua máquina de notícias falsas, milhares de armas distribuídas pela população civil e importantes posições da extrema-direita no aparelho de Estado.
Lula, por seu lado, sendo a esperança que resta para que a democracia política sobreviva, está numa camisa de forças. A estratégia traçada foi a de colocar a clivagem não entre a esquerda e a direita, mas entre o campo democrático e o campo fascista, porque é essa a escolha real que se coloca na eleição presidencial no Brasil. Por isso, junto a Lula estão vários setores de direita, incluindo o seu vice-presidente, Gerlado Alkmin. O apoio de Ciro Gomes e de Simone Tebet significará novos compromissos com o centrão, com o capital financeiro e com os setores mais poderosos da sociedade brasileira, que não querem nenhuma alteração na estrutura profunda de desigualdade.
Nem tudo foi mau no passado domingo, é verdade. Lula leva uma vantagem de 6 milhões de votos sobre Bolsonaro, o seu partido até teve mais deputados (subiu de 54 para 80), o PSOL (partido anticapitalista que nasceu como cisão à esquerda do PT, e que apoia Lula nesta eleição) elegeu a sua maior bancada de sempre, há uma maior diversidade social na composição dos eleitos (com uma bancada indígena, por exemplo), várias figuras da direita não conseguiriam fazer-se eleger, lideranças como a de Guilherme Boulos (do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e ex-candidato presidencial) confirmaram nas urnas a sua força. Mas os problemas de Lula e do campo progressista não se esfumarão com a vitória eleitoral mais que desejável na segunda volta. Essa vitória provável, ao mesmo tempo que será um alívio contra a barbárie, ditará também o início de uma conjuntura de dificuldades e de um precário equilíbrio entre interesses contraditórios. O futuro do Brasil mostra-se assim tão dramaticamente imprevisível como as ameaças do passado.
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