Nas moedas onde na cara está cunhado o populismo, o que é que está cunhado na coroa? Arrisco uma resposta: o statu quo. Statu quo quer dizer o estado das coisas. E o estado das coisas tem a ver com o poder de facto: com o poder político, com o poder económico, com o poder social e com o poder mediático. Opõem-se mutuamente: os populistas atacam este estado das coisas, e o statu quo ataca os populistas.
Volto esta semana a Eatwell e a Goodwin: "aqueles que votam nos nacional-populistas são ridicularizados e chamados de hillbillies [“matarruanos”], rednecks [“burgessos”], chavs [“grunhos”] ou little englanders [“broncos”]. Hillary Clinton descreveu metade dos apoiadores de Trump como “cesta de deploráveis”, pessoas cujas visões são “racistas, sexistas, homofóbicas, xenofóbicas, islamofóbicas”. Na Grã-Bretanha, o primeiro-ministro David Cameron desdenhou dos defensores do Brexit como um bando de “malucos, lunáticos e racistas rústicos”, e colunistas de importantes jornais urgiram os políticos de Westminster a virar costas às áreas em situação difícil que estavam prestes a apoiar o Brexit." (versão adaptada do português do Brasil). O resultado é conhecido.
É fácil perceber por que é que no statu quo, quase todos avocando uma superioridade moral, e muitos movidos por interesses particulares, se tem feito dos populistas o actor principal do debate político. Os discursos segregacionistas, racistas e iliberais dos populistas justificam a avocação da superioridade moral da maior parte; os interesses particulares, de polarização, justificam o tacticismo dos outros. É também fácil perceber por que é que, em privação de algum tipo, os que se sentem abandonados pelo poder se sentem atraídos pelos discursos populistas.
Neste jogo de moeda ao ar, a democracia tendencialmente iliberal tem sido o mote dos populistas, a oligarquia vagamente liberal o mote do statu quo. Em ambos os casos, quem fica a perder é a democracia liberal.
Por cá, na semana passada, Ana Sá Lopes, no Público, entrevistou Miguel Pinto Luz, vice-presidente do PPD/PSD e vice-presidente da Câmara Municipal de Cascais. Nesta última condição, Pinto Luz tem co-liderado, com Carlos Carreiras, uma interessante e peculiar oposição ao Governo. Como autarca, tem "deixado obra", mas tem-no feito imprimindo sobre aspectos centrais da vida em comunidade uma visão disruptiva e inovadora, global, pondo na práctica local o que tantos deixam só nas palavras. Com as pessoas no centro das suas políticas. Algo que deveria merecer atenção, sobretudo a uma jornalista empenhada na sua tarefa mais nobre: a elevação do debate.
E o que fez Ana Sá Lopes? Passou 40 minutos a perguntar-lhe coisas sobre o Chega. 40 minutos! Um tratado sobre o jornalismo actual. Nenhuma pergunta sobre o governo da cidade, nenhuma pergunta sobre o governo do país, nenhuma pergunta sobre acção climática, sobre mobilidade, sobre saúde, sobre captação de investimento, sobre educação, sobre segurança, sobre acção social. Nenhuma pergunta sobre o essencial da vida pública, matérias em que Cascais tem inovado e mostrado o caminho; um caminho alternativo ao que o PS tem apresentado no Governo. E tudo matérias em que o PPD/PSD tem que mostrar ser diferente do PS.
Terá o entrevistado sido tíbio nas respostas? Não. Pelo menos duas vezes diz que discorda de 98% do que André Ventura diz, e classifica de "barbaridades" boa parte do seu discurso. Mas isso não pareceu suficiente à jornalista. E, lamento, nem o timing político o justifica: as próximas eleições legislativas são só daqui a 4 anos. 4 anos que serão os mais difíceis da vida dos portugueses; período da troika incluído. 4 anos em que soluções para a vida das pessoas são, mais do que essenciais, absolutamente vitais.
Porquê? O que é que pode justificar esta obsessão doentia? Desagravo Ana Sá Lopes. Não está sozinha: a generalidade da comunicação social, alcandorada no tacticismo socialista - com Costa, Ferro Rodrigues e Santos Silva como generais - tem alimentado este jogo. O resultado é a erosão da qualidade da nossa democracia liberal, e o empobrecimento do país.
E é por isto, e não por divagações de ciência política, que as propostas concretas sobre acção climática, mobilidade, saúde, captação de investimento, educação, segurança, e acção social deveriam interessar mais.
Ora, se o PPD/PSD está na oposição, num país onde o PS, mais do que estar no Governo está instalado no(s) poder(es), se confunde com o statu quo, que interesse pode aquele partido ter nesta moeda corrente? Nenhum. Aliás, porque nenhum outro partido se mistura tão frequentemente com os vícios do statu quo como o PS: corrupção, nepotismo, favorecimento indevido e abuso de poder. O que interessa ao PPD/PSD, e ao país, é uma mudança de moeda.
Francisco Mendes da Silva, também no Público, na edição de Sábado, onde a entrevista de Ana Sá Lopes a Miguel Pinto Luz foi reduzida a escrito, aponta um caminho e eu concordo com ele. A pergunta é o que deve, então, o PPD/PSD fazer quanto a isto. Aproveito a sugestão de Mendes da Silva e adapto: primeiro, diria que a vocação do PPD/PSD é ser alternativa, sozinho e maioritário, ao PS, mas não num acantonamento "social-democrata", antes como grande federador do espaço democrático à direita do PS; segundo, que cabe ao PPD/PSD marcar a agenda e o programa, com as suas críticas e as suas propostas; terceiro, que quem concordar com o PPD/PSD que venha ao PPD/PSD; e por fim, que aquilo que o Chega representa hoje, no tom e no teor, não é espaço comum com o PPD/PSD.
Mas diria mais: diria que os jornalistas, parte essencial da vida das sociedades democráticas, deveriam ir perguntar antes ao PS se tem convergências, e quais, com o PCP e com o BE, que são contra a UE e contra a NATO, apoiantes activos ou simpatizantes passivos de ditaduras, e que não estão do lado da Ucrânia nesta guerra infame e, porém, determinante do futuro próximo do mundo; partidos com quem o PS anunciou e estabeleceu pontes, com o célebre derrubamento do muro e com a geringonça. Em matéria de normalização e alianças com os extremistas, o PS tem mais experiência e mais coisas a dizer. E, no entanto, ninguém lho pergunta. É tempo de mudar isso.
Ao PPD/PSD cabe a responsabilidade - o país não entenderia outra coisa - de ser capaz de mudar de moeda. E pôr fim a este jogo, onde o PS ganha sempre.
Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia.
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